2.4.12

O Artista
Título original:
The Artist
De: Michel Hazanavicius

Com: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman

Género: Comédia Dramática

Classificação: M/12
Outros dados: BEL/FRA, 2011, Preto e Branco, 100 min.

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"Hollywood, 1927: uma era está a chegar ao fim e um novo tempo desponta. O cinema tornara-se o entretenimento mundial dos pobres, atingira um notável nível de desenvolvimento da sua linguagem, criara deuses e uma indústria poderosa. Uma nova invenção técnica estava, todavia, à beira de tudo mudar: a possibilidade de sincronizar som e imagem ia colocar o cinema sonoro como realidade dominante. Mas ninguém sabia e ninguém esperava. Quando a Warner Brothers resolve avançar para a produção de “O Cantor de Jazz”, após um volumoso investimento a reequipar a cadeia de salas de cinema que possuía, toda a gente achava que Harry Warner e os irmãos estavam a cavar um buraco sem fundo. E ele bem avisava: “Os Fairbanks, as Pickfords e a maioria das outras luminárias do cinema são bonecos que têm recebido salários fabulosos não pelo que fazem mas pelo que as câmaras fazem por eles.” Se George Valentin/jean Dujardin, personagem central de “O Artista”, existisse deveras, estaria incluído na severa advertência de Harry Warner. “O Artista” é sobre a súbita viragem de carreira que várias vedetas sofreram nesse fim da década de 20 em que, ainda por cima (e o filme também o mostra), a crise financeira de 1929 atirou muitas fortunas pelo cano abaixo. Só que, enquanto uns descem, outros sobem — e lá está Peppy Miller/bérénice Bejo, candidata a atriz, a trepar pelos cartazes acima e a fazer-se vedeta dos novos tempos. Pormenor não secundário: “O Artista” quer, de alguma maneira, aproximar-se fisicamente do modelo que homenageia e faz-se a preto e branco, quase sem diálogos falados, no formato clássico do ecrã (1.33:1), o que leva muito boa gente a chamar-lhe “filme mudo”, coisa que, de todo em todo, não é."

"Tomemos um exemplo, colhido quase no início da fita, que jamais poderia fazer parte de um filme mudo: a cena da estreia do derradeiro grande sucesso de George Valentin. A cena passa-se por detrás do ecrã, onde o ator, a sua partenaire e esposa Doris/penelope Ann Miller, o produtor e mais uns quantos esperam pelo fim do filme e pelo momento de subir ao palco e recolher aplausos. Valentin vê-se na transparência da grande tela e, quando as palavras “The End” se desenham, olha em alvo, como que à espera de escutar a reação da sala. Não é só ele que espera, nós também, mas não escutamos nada — evidentemente. Percebemos que há aplausos pelo sorriso de Valentin, que se apressa a ir recolhê-los em pessoa. Em 1927, nenhum realizador faria uma cena assim, o som em off ainda não existia como recurso estilístico, pela simples razão que o som ainda não existia. Mas a ideia de som, a necessidade de som já se fazia sentir, e muitas vezes os filmes mostravam-no abertamente. Lembremos o aumento do tamanho das letras nos intertítulos a representar uma frase vociferada ou o uso de um muito grande plano de uma boca aberta para representar o grito (processo que o realizador Michel Hazanavicius também utiliza em “O Artista”). Outra sustentação para a afirmação de “O Artista” não se tratar de um filme mudo vem da longa sequência em pesadelo em que o protagonista sonha que todo o mundo tem som (e há ruídos, risos, toda a ambiência se ouve), ele é que não tem voz. Aqui a sofisticação do procedimento é deliciosa, porque não tem lógica, nem do ponto de vista de filme sonoro nem do ponto de vista de filme mudo — se considerarmos uma estética da transparência. Só faz sentido se o espectador aceitar que está numa sala de cinema e que o que vê não é uma representação do real, mas outra realidade com regras próprias."

"Criar outra realidade: é essa a aposta total de “O Artista”. E, por isso, o que mais pesa nele não é a história (que se conta num parágrafo — curto), mas os artifícios narrativos que se usam, o jogo entre a memória, as expectativas, as convenções e a maneira como Hazanavicius preenche o que se adivinha ou desconcerta. Ora colando-se à memória (estou a lembrar-me do cenário da produtora, quando Valentin se despede e desce a escada, no momento em que Peppy sobe, espaço bidimensional mas trabalhando com a altura e o movimento dos figurantes — processo tão típico de algum cinema mudo) ora parodiando-a (a divertida sequência em que Peppy conduz o automóvel, desgovernada), “O Artista” é um daqueles filmes a que assistimos sem que o sorriso descole do rosto. Sobretudo se formos cinéfilos e degustarmos o corpo da linguagem cinematográfica."



"Paradoxalmente, o filme que visita com grande amabilidade o tempo do cinema mudo faz uso amplo dos prodígios do cinema digital. Ainda mais paradoxalmente, esta homenagem a Hollywood (aí filmada, aliás) é feita por um realizador francês, numa produção franco-belga, com capitais exclusivamente europeus e atores protagonistas franceses. Como é que chega aos Óscares, ao ponto de ser um dos filmes favoritos? Por via dos irmãos Weinstein, que distribuem o filme em território americano e não costumam brincar em termos de Academia. Com um lançamento limitado em novembro (só para pôr o filme na corrida) e um relançamento em mais de 800 salas no passado dia 20, os Weinstein jogam a carreira americana do filme às costas das nomeações para os Óscares. Em França foi um grande êxito, entre nós tem todas as condições para o ser. Não há como um feelgood movie para animar as gentes." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 04/02/2012