Título original: Eastern Promises
De: David Cronenberg
Com: Josef Altin, Mina E. Mina, Naomi Watts, Viggo Mortensen
Género: Dra, Thr
Classificação: M/16
CAN/EUA/GB, 2007, Cores, 100 min.
"Ele fala pouco, mas tem aquele olhar incisivo, aquele perfil tenso, aquele modo de andar felino. Pode ser um simples motorista de gente com negócios que ele nem quer saber, como um paciente predador que só espera a vez de mostrar as garras, saltar sobre a vítima. Mas também pode ser um vingador, alguém com um passado por resolver, contas em aberto, débitos e créditos num rol de sofrimento. Ou um anjo de extermínio que o céu pôs ali para espalhar pragas e enxofres sobre o Mal que grassa e despertou a ira de Deus. Há uma verdade qualquer, nada evidente, na figura de Nikolai - e havemos de persegui-la, o filme há-de persegui-la, numa espécie de inquérito determinado, mesmo se não esperamos nunca que ele desate os nós, atalhe as veredas, reconduza a paz ao universo. É esse o cerne da questão neste Promessas Perigosas, é esse o elo de ligação ao «corpus» de Cronenberg, sempre à procura do que não é evidente, do que está debaixo da pele, no fundo dos olhos, na geografia escondida dos corpos."
"O resto é «MacGuffin», como diria Hitchcock. Mas que bem nos arpoa e ilude Cronenberg, logo com aquele assassínio selvagem, ainda mal nos sentámos na cadeira, degola de orelha a orelha, congelação e ocultação de cadáver, antes de ser lançado ao lodo do rio. E logo outro, o de uma jovem mulher espancada que ninguém sabe quem é, mas deixa um diário (em russo) e um filho que nasce no momento em que ela morre. E nós vamos atrás desse isco - e de outros iscos - caminhando por Londres que mais parece uma cidade portuária vagando num tempo estranho, interrogando os lugares e os personagens que não cessam de aparecer e de abrir novas direcções para a trama. Espantoso argumento este (de Steven Knight), que consegue que andemos, interessados, durante meio filme sem sabermos deveras de que filme se trata, nem fazermos a mínima ideia do que vem a seguir. Agora que tantos de nós se queixam de previsibilidade, de remastigação do já visto, jubilatório é ver que ainda é possível sermos seduzidos pela descoberta, em vez de sermos contentados com o que já sabemos. E espantosa cenografia, também, seja na escolha de exteriores seja na decoração de interiores (assina-a Carol Spier, que, com Cronenberg, já fizera trabalho superlativo em Uma História de Violência, eXistenZ, Crash e tantos outros, colaboração fiel a traduzir-se numa respiração dos lugares que é o útero perfeito para o universo do cineasta)."
"E já que este texto também ultrapassou a metade, talvez seja bom informar que o filme acontece no interior da máfia russa londrina e reparar na crescente presença desses eslavos de pele clara e olhos frios no cinema ocidental, gente que aparece sem descodificador à altura para as nossas categorias interpretativas, pois nem Tchekhov ajuda nem Lenine, Estaline, Tarkovski ou Yevtuchenko nos amparam na sua identificação. Verdadeiros ovnis - e Nikolai (na interpretação exímia de Viggo Mortensen) bem poderia ser um extraterrestre, de outra galáxia. Tresvario ao vir buscar pistas de ficção científica para Promessas Perigosas? Nem tanto, pois também os géneros se mesclam no filme e se alguém puder determinar a qual ele pertence, merece um prémio."
"Prémios, muitos, merece Cronenberg (até agora só teve um - o do público no Festival de Toronto, o que é uma boa indicação para as suas possibilidades comerciais). Por mim, atribuo-lhe já o de melhor cena de acção do ano, nesse combate desigual em que o herói está literalmente nu e derrota dois matadores, cena assombrosa, na encenação, na violência, na montagem. E ponho Mortensen na lista para os Óscares (mas é apenas o protagonista de um elenco multinacional, escolhido com mestria e onde não saberei preferir a untuosidade perigosa de Armin Mueller-Stahl à violência adoidada de Vincent Cassel). Infelizmente, nenhum poder detenho para qualquer desses dois intentos. Deixo aqui, portanto, a simples menção de que Promessas Perigosas é obra onde o cinema se alcandora muito acima do vulgo."
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 01/12/2007
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 01/12/2007