Título original: No Country for Old Men
De: Ethan e Joel Coen
Com: Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Josh Brolin
Género: Dra, Thr
Classificação: M/18
EUA, 2007, Cores, 123 min.
"As paisagens estão lá, como nos tempos dos cavaleiros solitários, percorrendo o Oeste com a fé de uma nova fronteira talhada a golpes de violência, sorte e esperança, que ficaram gravados na memória americana como a sua grande saga fundadora. Não faltaram Ulisses em intermináveis navegações, sereias tentadoras, a febre do ouro e da terra, ciclopes que pareciam intransponíveis, toda a gama da heroicidade e da cupidez humanas - e um céu de nunca mais acabar. O cinema registou a lenda em «westerns» onde as paixões se desenharam inteiras, os heróis garantiram o seu Olimpo, os vilões o castigo - e até os remorsos tiveram lugar."
"As paisagens ainda estão lá, mas a fotografia de Roger Deakins já não as mostra limpas e claras, muito pelo contrário. Estão maceradas, como macerados estão os céus por uma morbidez que não vem da terra, foi lá plantada pela maldade humana. Quando Cormac McCarthy intitulou No Country for Old Men o romance em que os Coen agarraram para a fita, era a essa morbidez que se referia, sublinhando não haver lugar para os que ainda se lembram do mundo como ele era - antes da devastação moral. O título português é, deste modo, muito infiel, pois trai a desolação de quem viu o tempo passar e, com ele, passar a esquadria de referências. Assentado nessa ausência está o velho xerife Ed Tom Bell, que nem a poderosa interpretação de Tommy Lee Jones consegue pôr no centro da ficção. É que o nosso olhar é muito mais tentado pelo aventureirismo de Llewelyn Moss (Josh Brolin), que, um dia, encontra uma matança no meio do deserto, um carregamento de droga e uma mala com dois milhões de dólares e pega nela, na ávida vontade de mudar de vida. E, sobretudo, o nosso olhar não consegue desligar-se do sortilégio malsão de seguir Anton Chigurh, o assassino destituído de senso moral, com a garrafa de ar comprimido na mão e aquele olhar de cão de fila perseguidor que nada faz parar e que, sabemos desde o primeiro minuto, tem um prazer orgástico no acto de matar. Javier Bardem interpreta-o num paroxismo demencial que os Coen conseguem tintar de um humor negro (a cena com a moeda é indescritível), tanto mais paradoxal quanto um dos traços que define o personagem é a completa falha de sentido de humor... Genial trabalho de actor que a Academia acaba de reconhecer com um Óscar."
"Também o nosso olhar está, assim, corrompido, perdemos a capacidade de confiar na competência justiceira de homens como Ed Tom Bell, como se a inteireza e a eficácia se tivessem divorciado. A globalização ensinou-nos o cinismo de preferir os tecidos baratos produzidos em regime de prática escravatura e exploração total, numa China despida de preconceitos ideológicos (é assim que se diz, não é?), aos fabricados no Ocidente em condições de protecção social e sindicatos vigilantes e, por isso, mais caros. Porque é que havíamos de confiar em Ed Tom Bell? O filme, de resto, dá-nos razão."
"Saímos, por isso, da sala de cinema com uma ponta de desgosto na alma, apesar de tudo gostamos que o cinema recomponha a realidade, pelo menos na ficção a justiça há-de prevalecer. Pobres de nós, espectadores, se quisermos ir buscar a Este País Não É para Velhos qualquer forma de conforto. Desapiedados, Joel e Ethan Coen excedem-se em virtuosismo, recuperando todas as sabedorias narrativas do cinema clássico (do «western» a Hitchcock), deliciando aqueles de entre nós que apreciam sobremaneira a elegância das formas. Mas não cedem à tentação do apaziguamento. Esta é uma fita cruel, uma procissão de morte, feroz - os assassínios são cruamente estilizados, melancolicamente brutais -, tanto mais perturbadora quanto absolutamente surpreendente no trajecto, jamais previsível (e, deste ponto de vista, melhor apreciado por quem não conheça o romance de Cormac McCarthy que, diz quem sabe, os Coen seguiram com grande fidelidade)."
"É essa brutalidade desnorteante, esse Oeste reconhecível e desfigurado, esses longos silêncios povoados de sons (meus Deus, aquele zumbido de moscas sobre os cadáveres inchados), a precisão formal (acho que nunca vi uma colisão automóvel como a que ocorre quase no fim) que fazem de Este País Não É para Velhos uma fita espantosa que a Academia considerou a melhor do ano. Mas o que nos fica pegado à pele é a incompreensibilidade que nos separa de Chigurh (estranhíssimo nome, escolhido, porventura, por não pertencer a mais ninguém), é o não podermos penetrar nos seus meandros psicológicos, nos mecanismos que o regem. Se querem saber, eu acho que Chigurh não tem alma - é o Mal em trânsito, superlativo horror, indescritível fascínio."
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 01/03/2008
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 01/03/2008