Título original: Coeurs
De: Alain Resnais
Com: Sabine Azéma, Lambert Wilson
Género: ComDra
Classificação: M/12
FRA/ITA, 2006, Cores, 120 min.
"Será que os grandes cineastas fazem sempre o mesmo filme? A pergunta não é nova, costuma ser aplicada a Renoir ou a Ford, e pode sê-lo também a Alain Resnais, veterano com 85 anos, referência maior do cinema francês da segunda metade do século XX. «Fazer o mesmo filme» nada tem de pejorativo. Resnais faz, sem dúvida, parte desse grupo restrito de cineastas que têm, digamos, a sua própria mecânica. Autores que, de tão genuínos, se reinventam de um filme a outro, deixando a sensação de que tudo ficou na mesma. Corações, estreado em Veneza 2006 (Leão de Prata para o realizador), é um grande filme melancólico sobre a solidão, como todos os de Resnais. Descobrimos facilmente a rotina: repetição do dramaturgo (o filme adapta a peça Private Fears in Public Places, do londrino Alan Ayckbourn, responsável pelo texto de outro filme de Resnais, Smoking/No Smoking), repetição dos actores (André Dussollier, Sabine Azéma e Pierre Arditi há muito que fazem parte da «família Resnais»), do «décor» (de novo uma Paris recriada em estúdio) e até mesmo de personagens (Dussollier volta a vestir a pele de agente imobiliário depois de É Sempre a Mesma Cantiga)."
"A cantiga é a mesma, de facto. Aqueles que saírem da sala com o coração apertado (e deste filme não se pode sair de outra maneira) dirão que já sentiram isso em qualquer parte, num qualquer momento da vida, talvez noutro filme de Resnais. É provável que o efeito de estranheza venha das personagens de Corações, criaturas sem modelo, sonâmbulos das suas próprias vidas, um pouco como em Minnelli. Passamos o filme todo a olhar para «losers», gente que está a fazer-se mal sem se dar conta, discretamente, no seu quotidiano resignado e medíocre. E, no entanto, há aqui um paradoxo, porque este filme de Resnais não é menos musical que os anteriores («on connaît la chanson...»), e se há música, há comédia. Mas uma comédia triste, em tom menor. Grave e emocionada. Talvez seja perigoso começar a falar de Corações desta maneira. Afinal, nem apresentámos as personagens do «petit théâtre de Resnais», mas o que mais nos intriga aqui é saber para onde foi o desejo destes irmãos e irmãs, destes pais, filhos e amantes, forçados a habitar o mesmo espaço de solidão. Estes corações do filme de Resnais já não batem, isso é claro: estão suspensos no mesmo tempo de Marienbad, no mesmo problema insolúvel. Quando o filme começa, tudo já aconteceu e tudo já terminou, como um passado projectado no futuro, nunca aqui e agora."
"Resnais sabe-o, inventa diálogos, duetos sublimes. Temos Thierry (André Dussollier), agente imobiliário. Trabalha com Charlotte (Sabine Azéma) e vive com a irmã mais nova, Gaëlle (Isabelle Carré). Esta espera pelo seu príncipe encantado, em vão, e é talvez a única personagem na qual Resnais deposita ainda uma réstia de esperança. Uma das clientes de Thierry, Nicole (Laura Morante), procura um três assoalhadas para si e para o companheiro Dan (Lambert Wilson), ex-militar e alcoólico que afoga as mágoas no bar de Lionel (Pierre Arditi). Este último, por sua vez, toma conta do pai acamado (nunca o vemos, a voz é de Claude Rich). Sinopse um pouco complicada, não? Digamos antes que todas as personagens estão perdidas, a meter dó. Passam uma vida inteira juntas sem se conhecerem. Todas partilham essa arte da ilusão em que a humanidade parece viver com os pés um palmo acima da terra. São flocos de neve que se vêem cair da janela. Talvez expliquem, neste palco de teatros em montagem alternada, o que um dia disse Kafka da preguiça: é o pior dos defeitos. «La vie est un roman», para citarmos um velho filme de Resnais, mas o romance acabou, o amor acabou, já não há mais amigos, resta o silêncio e, para isto, para a ruptura, a solidão, a tristeza, não há aspirina nem consolo. De um plano a outro, Corações ameaça evaporar-se. Se calhar é isso que o torna sublime. Coisas muito difíceis de explicar em prosa, de qualquer modo."
Francisco Ferreira, Expresso de 05/04/2008
Francisco Ferreira, Expresso de 05/04/2008