Título original: Funny Games
De: Michael Haneke
Com: Naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt, Brady Corbett
Género: Ter, Thr
Classificação: M/18
EUA, 2007, Cores, 113 min.
"PARA MUITA GENTE,a Áustria era o país doce dos concertos de Ano Novo ou da Música no Coração, das valsas vienenses e do «apfelstrudel» polvilhado de açúcar — até que os filmes de Michael Haneke (Brincadeiras Perigosas, em 1997, muito em especial) estragaram o quadro de tampa de caixa de bombons. A violência desse filme foi uma das coisas mais terríveis que o cinema alguma vez deu à luz, até porque tudo se passava entre gente civilizadíssima e da forma mais civilizada que é possível. Numa estância de veraneio, dois jovens de boa extracção social e esmerada educação, assombram uma família, dominam-na e começam a praticar jogos cruéis, em que a tortura não tem outra razão de ser senão o comprazimento em praticar o mal. Em última instância, vão liquidando os membros da família, um atrás de outro, à medida que a noite avança. Desde 1997 que a Áustria perdeu o estatuto bonacheirão que, evidentemente, nunca mereceu, como não merece que a associem à insanidade atroz. Há imagens que são, de todo em todo, infiéis às coisas e aos lugares, estereótipos que, uma vez assentes, se podem tornar até motivo de ideias ou atitudes discriminatórias, racistas ou xenófobas. É bem certo. Mas vai demorar muito até que isto passe... E já foi há mais de dez anos."
"Entretanto, Michael Haneke fez outros filmes — sempre sobre a violência e os seus efeitos — e resolveu refazer Brincadeiras Perigosas, na América. É essa versão que agora nos chega. Não consigo perceber a razão deste «remake» — a não ser que seja para afastar a Áustria do quadro e sugerir que a violência é globalizada... Até porque não é. Aquela violência metódica, fria, de uma impiedade perversa, dentro da mais hipócrita das composturas, é algo de intrinsecamente europeu, luterano-calvinista, a nata da sociedade de consumo culturalmente evoluída, o tédio a supurar o inominável. Pessoalmente, até acho que casa mal com a América e Haneke, fora os actores, nem se deu ao trabalho de adaptar, fez um «remake» tão fiel ao outro filme quanto lhe foi possível, o que agrava a perplexidade: porquê?"
"É claro que a interrogação não apouca o que o filme traz no ventre (exactamente o que a versão de 1997 também trazia): uma reflexão sobre a existência do Mal (com maiúscula, sim, sem álibis, sem justificações, sem culpados, sem Freud, sem Marx e, a não ser que Deus exista, sem uma entidade metafísica a fundamentá-lo). E uma reflexão que não se limita a ser sobre a existência, mas sobre o prazer que o Mal, em acção, pode proporcionar."
"Brincadeiras Perigosas é o espectáculo do horror, nunca se esquece disso e nunca deixa que nos esqueçamos disso. Desse modo, rasga a nossa sensibilidade ao tornar-nos explícito que, sim, estamos a ver um filme, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis e estamos a gostar de ver (o que não é a mesma coisa que gostar de ver actos horríveis, mas não deixa de ser muito perturbador). E desejamos que venha aí uma violência boa (mas há uma violência boa?) que reponha a ordem (e ela vem, mas, porque fora da lógica do filme, é eliminada num dos muitos efeitos de distanciação que Haneke semeia). Dele não se foge, ninguém foge, nem nós que estamos ali quase em estado hipnótico (que bem que Haneke pratica a arte do cinema!), nem os personagens que estão ali a servir um desígnio sem aleatoriedades. É que se Deus não joga aos dados, menos ainda joga Michael Haneke, senhor do seu filme de fio a pavio."
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 05/07/2008
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 05/07/2008