Título original: Gomorra
De: Matteo Garrone
Com: Toni Servillo, Salvatore Abruzzese, Simone Sachettino
Género: Dra
Classificação: M/16
ITA, 2008, Cores, 137 min.
"ELES estão numa atmosfera azul, coisa de ficção científica, cor metálica, ultravioletas. Eles morrem ali, em lazer, relaxados no solário, sem ver os matadores, nus, o sangue a esparramar-se pelas paredes, pelo chão, deixando apenas zumbido e silêncio. O que foi? Ajuste de contas, deduzimos, gente de bandos diferentes a fazer o que já vimos fazer tantas vezes que se tornou um lugar-comum de filmes sobre o submundo do crime. É assim que começa Gomorra, a fita que Matteo Garrone foi buscar ao livro-reportagem de Roberto Saviano, um «best-seller» internacional, agora também por aí nas livrarias portuguesas. Começo definidor: por uma lado, a estranheza de um lugar, por outro, uma acção reconhecível. Encenação explicitada e convocação de códigos, como se o realizador quisesse uma afirmação clara: isto é cinema. Mas, logo a seguir, a câmara salta para as ruas da província de Nápoles e aquela afirmação só não é esquecida pelo espectador porque foi muito forte e peremptória. É que o impacto dos espaços cenográficos e da mole humana, dos rostos, dos gestos, daquela música falada e dialectal que quase não se entende mas define um território com mais precisão que um trabalho de topógrafo, lança-nos no realismo. De repente, é como se nós estivéssemos lá e a câmara à mão fosse reportagem, olho invisível na desvendagem da realidade."
"Gomorra é uma experiência estimulante, herdeira das melhores lições neo-realistas (perfeita a ligação entre actores profissionais e gente escolhida in loco, entre os populares), mas com um passo de recuo e sem qualquer prédica ou explicação do mundo. Constrói-se em várias histórias que avançam em uníssono, saltando a nossa atenção de umas para outras com uma habilidade narrativa que apraz registar. Em todas elas, situações criminais, desde a iniciação de um miúdo, ao mundo da contrafacção de alta-costura, ao mercado da droga ou ao tráfico de resíduos tóxicos das indústrias do norte, soterrados clandestinamente em abandonadas pedreiras napolitanas. É um «puzzle», mas por mais voltas que lhe demos, vemos parcialidades, nenhuma conjura global (a Camorra, verdadeiramente, neste filme, nem existe e só existe) — e muito menos os que puxam os cordéis, os que não circulam nos bairros degradados, mas noutros corredores. Ou seja, Gomorra é fragmentário e popular, os pés no pó, nos detritos, na lama, no esterco, nas casas inabitáveis, nas ruínas de construções incompletadas, no mau-cheiro, na gente boçal, na rudeza agreste da miséria. Não tem um programa policial — não segue pistas para mostrar os fautores, todos os que por lá andam são promotores ou cúmplices silenciosos, não há inocentes (é terrível quando não há heróis ao lado de quem o espectador se ponha). Nem tem um programa ideológico — não explica o que se passa, não desenvolve uma teoria, o olhar é de um enorme desgosto, mas seco e desapiedado. Como quem grita a ignomínia, como quem abjura o fatalismo, sem entrever redenção ou panaceia. E deixando em nós, apesar de sermos espectadores mais protegidos do que qualquer colete antibala poderia, algumas nódoas negras."
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 21/09/2008
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 21/09/2008