24.10.09

"Não é a falta de respeito que me incomoda nas declarações de Saramago sobre a Bíblia (e nem comento os apelos a que renuncie à nacionalidade portuguesa). Muito menos a mim, ateu de pai e mãe e razoavelmente anticlerical. É o primarismo. Como reduzir um conjunto de textos tão complexo e contraditório a “absurdos” e “disparates”? Como pode um escritor resumir assim aquela que foi a fonte de inspiração de milhares de textos literários (até os dele), composições musicais ou obras de arte? Como se pode falar de um “manual de maus costumes” quando se fala de textos (dos tão diferentes Antigo e Novo Testamento) que contêm em si o pior e o melhor da humanidade, toda a crueldade e generosidade, toda a vingança e perdão? Como pode alguém que escreve sobre a nossa história comum descer ao mais básico dos anacronismos históricos?

O primarismo está a transformar-se num ar do nosso tempo. É ele que faz crescer os fundamentalismos religiosos e as leituras literais da Bíblia e do Corão. E o primarismo atrai primarismo. Cria um manto espesso de intolerância e ignorância, de estupidez e incomunicabilidade. No tempo da frase curta, da declaração bombástica, do escândalo sem sentido da história, o primarismo é mais forte do que qualquer ideia. O que é extraordinário é que seja eu, um colunista da espuma dos dias, a dizê-lo a propósito de um escritor, que tem outro tempo para respirar, que pode ir muito além do espectáculo da polémica fácil.

Recuso-me a ser levado nesta avalancha. Esta avalancha que resume o cristianismo à sua caricatura. Que resume o islamismo à sua violência. Que resume o judaísmo aos avanços e recuos de um Estado. Que resume o ateísmo a uma nova religião científica que esmaga milénios de história. Não, nenhum dos livros das três religiões monoteístas se explica com citações escolhidas ao acaso. E não, não é preciso ser cristão para sentir comoção com o ‘Cântico dos Cânticos’. Não é preciso ser crente para perceber que a religião condensa em si as camadas da história de que se faz a humanidade. Que ela tem um tempo e um ritmo que não cabem em conferências de imprensa. Não é preciso ser religioso para compreender esta permanente procura do sentido da vida e da imortalidade." Daniel Oliveira, Expresso de 24/10/2009