Hereafter - Outra Vida
Título original: Hereafter
De: Clint Eastwood
Com: Matt Damon, Cécile de France, Jay Mohr, Bryce Dallas Howard, George McLaren, Frankie McLaren
Género: Drama
Classificacao: M/12
Outros dados: EUA, 2010, Cores, 125 min.
Título original: Hereafter
De: Clint Eastwood
Com: Matt Damon, Cécile de France, Jay Mohr, Bryce Dallas Howard, George McLaren, Frankie McLaren
Género: Drama
Classificacao: M/12
Outros dados: EUA, 2010, Cores, 125 min.
"No princípio há uma jovem mulher francesa (Marie/Cécile de France) em férias numa ilha que desce a comprar presentes para os filhos do homem que deixa a dormir no quarto de hotel. Vagueia pelas bancas de artesanato para turistas, compra aqui e ali, quando um ruído surdo lhe perturba a marcha e uma onda de água colossal avança do fundo da rua. Levada na enxurrada, entre outros humanos, detritos e a cidade que colapsa com a fragilidade que se verifica sempre que a Natureza se encoleriza, Marie avizinha-se da morte naquele estado de inconsciência onde tudo parece evidenciar que se passou para o outro lado. Ela vê, então, numa perceção difusa, em que a realidade e a alucinação se embaraçam, vultos, sonoridades e sobretudo, uma impressão de paz que convida à travessia. Mas não, Marie volta a este mundo, sobrevivente de uma tragédia. E, apesar de eminente jornalista de televisão, foge dali, foge da notícia e volta para Paris, sempre na obsessão oculta de ter vislumbrado o outro mundo."
"Entretanto, em Londres, dois miúdos gémeos (Marcus e Jason/ Frankie e George McLaren) vivem com a mãe toxicodependente, sob estreita vigilância das autoridades. Um dia, após terem iludido essa vigilância, Jason vai a uma farmácia vizinha comprar um medicamento que combata a viciação em heroína e morre atropelado. Marcus é entregue a uma família de acolhimento, mas, quase apático e solipsista, num estado de desamparo extremo, apenas pensa em voltar a ter contacto com o gémeo."
"Ao mesmo tempo, em San Francisco, um homem (George Lonnegan/Matt Damon) aceita a solicitação do irmão para fazer uma “sessão” com um cliente. George consegue contactar o reino dos mortos, mas abandonara a atividade de vidente, porque percebera que o poder de falar com os que já morreram não é um dom, é uma maldição. Agora, tudo o que quer é ter uma vida normal, sem visões, sem saber de mais sobre os seus concidadãos. A teia assim lançada sobre um tripé de personagens e de histórias vai, evidentemente, unificar-se pois, dizem os cânones, as forças do destino hão de fazê-los encontrar-se para desvendar a verdade ou, pelo menos, mitigar as dores. Um homem que fala com defuntos, um miúdo que quer contactar o irmão morto, uma mulher que acredita ter pisado a antecâmara de outra vida, o que é que isto tem a ver com Clint Eastwood? Mais: como é possível tornar credível um filme arquitetado no campo do melodrama onde qualquer coisa parecida com a fé é essencial?"
"O que isto tem a ver com Clint Eastwood intuiu Spielberg que, lido o argumento de Peter Morgan (ele mesmo longíssimo do tipo de ficções políticas que lhe deram fama, como “A Rainha” ou “Frost/Nixon”), logo pensou no realizador de “Mystic River” para o dirigir. Uma das razões terá sido, avento eu, o caráter terra a terra, avesso a devaneios, do pragmático Eastwood que acabava por casar bem com uma história onde, bem vistas as coisas, nunca saberemos com exatidão se existe algo para lá do último suspiro ou se tudo não passa da esperança humana em poder rejeitar o negrume absoluto, o oblívio total. É isso que nos diz, leio eu, a sequência final do café em Londres, quando vemos, por uma única vez, algo que o vidente George vê (e não é sobre o outro mundo), um beijo que está no domínio dos desejos, não nos factos, vírgula num texto a instilar, pelo menos, um ceticismo discreto."
"Quanto à possibilidade de tornar credível uma ficção que, nas mãos de alguém na determinação de nos convencer, estaria confinada ao risível, só o génio de Clint Eastwood a explica. Digamos que numa teia de coincidências e de eventos extraordinários, o público é conduzido pela força das emoções a aceitar uma possibilidade, porventura pela empatia com a boa-fé com que os personagens se debatem com as suas dores e pela franqueza com que o cineasta as filma. Sem floreados, sem rodriguinhos, de um modo tão direto como filma o maremoto asiático de 2004 (efeitos especiais extraordinários para nos dar, com realismo, uma catástrofe que nunca ninguém viu com a magnitude que este filme nos mostra). São pessoas inteiras, diversas, com jeitos distintos de levar a vida — não é para demonstrar que a paciência é uma virtude que Clint Eastwood dedica tanta minúcia a algumas das tarefas quotidianas dessas pessoas, às vezes parecendo atrasar o curso do que queremos ver narrado. Assim se distingue a sabedoria com que se preenche de carne e particularidades personagens que, de outro modo, seriam estereótipos. Sabedoria ainda para, sem perder o centro de gravidade, sem fazer deles seres etéreos, conseguir mergulhá-los numa espécie de suspensão, como se um pingo de imaterialidade lhes houvesse tocado a pele e transmutasse a sua realidade numa coisa um palmo acima da do comum dos mortais (e há que sublinhar o papel da música — do próprio realizador — nessa suspensão). Em qualquer caso, “Hereafter — Outra Vida” é um gesto ousado daqueles que não se deve aconselhar. Questão de risco."
"Há várias coisas nada recomendáveis para fazer em cinema. Uma é pôr milagres a acontecer no ecrã — o público há de sempre achar que o ator está a fingir-se morto e abriu os olhos... Outra é figurar a vida para lá da morte. Sempre a tomaremos como onirismo, efabulação, faz de conta, só o admitindo dentro de um género — o fantástico — onde, precisamente, as coordenadas do que é possível e do que é credível têm chaves não-realistas. Se isto é algo que acredito aconselhável a qualquer candidato a cineasta, a verdade é que essas convicções, de vez em quando, vacilam. Estou pronto, assim, a asseverar que já vi um milagre acontecer — e foi no cinema: a ressurreição de Inger em “A Palavra”, de Carl Th. Dreyer. E já posso dizer que sinalizei, pelo menos, o portal de uma outra vida. Quem lá me levou, agora mesmo, foi o senhor Clint Eastwood, improbabilíssimo cicerone para tal jornada."
"A morte não é nada estranha a este cineasta. Desde os westerns de Leone que ele a costuma trazer aos que se lhe opõem, em geral na ponta de uma pistola — a contabilidade dos que abateu dando, à evidência, para ocupar vários condomínios fechados no Inferno. Já se figurou morto — em “Gran Torino” — que, também por isso, parece ser um bom lugar de despedida de Clint Eastwood enquanto ator. E se uma vez — em “O Justiceiro Solitário” — foi, quase de certeza, uma criatura vinda do outro mundo para repor a justiça e dizimar os pérfidos, era mais um anjo exterminador de ficção que um verdadeiro retornado da terra de onde, salvo melhor prova, ninguém volta. O que é novo é o território metafísico de que “Hereafter — Outra Vida” se aproxima, na conflitual fronteira entre o provável (aquilo que se pode provar), o plausível (aquilo em que é fácil acreditar) e o conveniente (aquilo que desejamos que seja). E nessa fronteira se mantém, num recolhimento severo, polémico, a provocar, decerto, contraditórias reações no público." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 22/01/2011