6.2.11

Um Ano Mais
Título original: Another Year
De: Mike Leigh
Com: Jim Broadbent, Lesley Manville, Ruth Sheen, Peter Wight, Oliver Maltman, David Bradley
Género: Drama, Comédia
Classificação: M/12
Outros dados: GB, 2010, Cores, 130 min.

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"No início do novo filme de Mike Leigh, há um rosto sem nome que, enquadrado em grande plano contra um fundo branco que impede a referência a um espaço-tempo preciso, se vai contraindo num esgar de angústia. Trata-se — percebê-lo-emos depressa — do rosto de Janet (Imelda Staunton), uma mulher de meia-idade que vai respondendo às insistentes perguntas de uma assistente social com a ansiosa exigência de uma prescrição de soporíferos capaz de lhe domesticar as insónias. Depois, a câmara do cineasta abandona-a à sua sorte, deriva por momentos entre diversas personagens sem se fixar em nenhuma delas e apenas voltará a trazê-la à nossa presença por mais uma vez, alguns planos mais tarde, para confessar que aquele aparente primeiro capítulo não passava, afinal, de um prólogo sem sequência visível cuja função parece consistir em estabelecer, desde logo, o tom emocional e o ritmo interno do filme (marcado por personagens em busca de uma salvação e por constantes descentramentos narrativos)."

"De facto, se o filme retoma a personagem de Janet, é para — em jeito de passagem de testemunho — nos apresentar a Gerri (Ruth Sheen), a psicóloga que visita alguns dias depois, e, através dela, ao seu marido Tom (Jim Broadbent), o geólogo com quem vive nos subúrbios de Londres. Em torno deste casal de meia-idade — cujos membros pela primeira vez veremos juntos a plantar legumes na horta à qual regressarão ciclicamente (numa espécie de ritual sagrado que parece constituir uma afirmação de estabilidade) —, orbitará, ao longo das quatro estações do ano que servem de pretexto aos quatro capítulos do filme, um conjunto de cinco ‘personagens-satélites’ que se deixam filtrar pelos seus olhos. São elas: Mary (Lesley Manville), a amiga de Gerri cuja histeria se destina a camuflar uma depressão profunda; Ken (Peter Wight), o amigo de Tom que esconde a solidão atrás de sucessivas latas de cerveja; Katie (Karina Fernandez), a simpática e prolixa namorada de Joe (Oliver Maltman), o único filho do casal; e Ronny (David Bradley), o irmão mais velho de Tom, que este acolhe em casa após a morte da mulher."

"Perante esta procissão de personagens, a mise en scène de Leigh desenvolverá, não apenas uma série de character studies (fundados na observação cuidada da vida quotidiana e em longos e reveladores trechos de diálogo), mas também um constante contraste dramático entre a estabilidade dos casais (Tom e Gerri, Joe e Katie) e o frágil equilíbrio das figuras em perda que rodeiam o núcleo familiar. Neste quadro, a atenção de Leigh concentrar-se-á sobretudo em Mary — personagem bipolar típica do cinema do realizador, cujas oscilações de comportamento acabarão por ditar a sua temporária exclusão da esfera social governada por Tom e Gerri. Com efeito, é da sua incapacidade de aceitar com resignação o seu próprio envelhecimento, é da reiterada dissolução dos sucessivos sonhos que vai acalentando (a compra de um carro em segunda mão que depressa se avaria sem remédio, por exemplo), que, em última instância, aqui se alimenta o olhar do cineasta."



"Talvez seja por causa disso que, no decurso daquela magnífica sequência final (iniciada através de um travelling circular à volta da mesa de jantar onde os dois casais se desdobram em ‘projetos de futuro’), Leigh vai extenuando de forma progressiva a presença da banda-som para nos deixar a sós com o silêncio de Mary — fantasma emparedado numa solidão incomunicável que, por meio do seu olhar perdido no vago, nos diz, com uma velhinha canção dos Smiths: “Life is very long, when you’re lonely.” Não é essa a mensagem que, à sua maneira, o rosto de Janet nos havia feito chegar logo no início? E não é esse o verso que o cinema de Leigh vem incessantemente recitando desde “Bleak Moments” (1971)?" Vasco Baptista Marques, Expresso de 29/01/2011