3.5.11

O Estranho Caso de Angélica
Título original: O Estranho Caso de Angélica
De: Manoel de Oliveira
Com: Ricardo Trêpa, Pilar López de Ayala, Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ana Maria Magalhães
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: ESP/POR/BRA/FRA, 2010, Cores, 96 min.

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""O Estranho Caso de Angélica” chega às salas portuguesas quase 60 anos depois da primeira versão do argumento, escrita por Manoel de Oliveira. Quem seguir este longuíssimo percurso concluirá que a saga, afinal, até acabou bem, com o filme a estrear no Un Certain Regard de Cannes (no ano passado), logo ali colhendo louvores e reconhecimento dos quatro cantos do mundo. Porém, a história deste ‘estranho caso’ está envolta em trevas. Obriga-nos a regressar aos fascistas anos 50 portugueses e à década mais miserável e estéril do nosso cinema — década indigna deste filme e da grandeza do seu autor."

"O projeto data de 1952 e chamava-se “Angélica”. Não foi o primeiro — nem seria o último — que Oliveira deixaria na gaveta desde “Douro, Faina Fluvial”, mas, neste terreno de dúvidas e de filmes por fazer, todos os indícios levam a acreditar que foi o projeto mais importante do cineasta do Porto. Em 1952, Oliveira submete o guião ao julgamento do Secretariado Nacional de Informação (SNI), organismo responsável pela propaganda política de Salazar, pela informação pública e também pelo cinema. Naqueles anos, as comédias populares portuguesas que triunfaram apesar da penúria do seu valor artístico, esses filmes de triste figura que serviam de extensão do regime, começavam a ser atacados, em especial pelo movimento dos cineclubes, muitos clandestinos. Para aquela geração de cinéfilos lusos, Oliveira é já a figura mais importante da cinematografia, a sua maior esperança. Contudo, o veredicto do SNI, que chumba “Angélica”, é severo: “Argumento pessimista e demasiado mórbido.” Recusa recebida com indignação... mas pia-se fininho."

"Nestes anos 50, Oliveira — é ele quem o diz no dossiê de imprensa de Cannes — descobre ainda que tem outro problema em mãos: “Com ‘Angélica’, tinha algumas reservas relativamente à ideia de filmar o sonho, já que a máquina de filmar não filma nem sonhos nem pensamentos (...). A pessoa diz que sonhou ou que pensou, mas não podemos ter a certeza quanto ao que ela diz. É qualquer coisa que está deformada ou que pode ser mentira.” Ora, em “Angélica”, a imagem do sonho..."


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"...curta-metragem sobre o trabalho do grande pintor de aguarelas António Cruz, na cidade do Porto: “O Pintor e a Cidade”. Filme notável que valerá a Oliveira, em 1957, o primeiro prémio internacional da sua carreira. Regressemos ao argumento do filme rechaçado pelo poder, “Angélica”, publicado na íntegra (com data de 18 de junho de 1954) no livro “Alguns Projectos Não Realizados e Outros Textos de Manoel de Oliveira” (ed. Cinemateca Portuguesa, 1988). O argumento foi inspirado num episódio autobiográfico, já que ao cineasta, tal como ao protagonista Isaac (Ricardo Trêpa), alguém pediu que fotografasse uma jovem mulher morta, amiga da família. Oliveira possuía uma máquina fotográfica — uma Leica — e notou que, ao fazer o foco, conseguira uma imagem sobreposta em que parecia que, do corpo, se evolava uma figura viva. A ideia do filme nasce desse episódio. E é por causa da fotografia acidental que Isaac começa a acreditar na ilusão de que a morta voltou à vida, ou seja, é pela fotografia que a imagem ganha o poder de uma alucinação."

"Esse argumento, bastante próximo da versão que Oliveira atualizou para os tempos de hoje (ainda que com nuances que parecem vir dos anos 50) e que daria origem a “O Estranho Caso de Angélica”, é um documento com uma precisão e uma inventividade apaixonantes. Já vêm daí os ruídos estridentes e desafinados, todos esses sons penetrantes e desconexos que assaltam a tranquilidade do jovem Isaac. Também no argumento se encontra descrito ao detalhe o delicioso episódio do gato que se fixa a mirar o pássaro na gaiola, augurando a fatalidade que há de vir. E, embora Isaac não seja exatamente um alter ego de Oliveira, não podemos esquecer que é ele, tal como o cineasta, aquele que vê e nos dá a ver a fotogenia de Angélica, essa fotogenia fatal, prova de contacto com um ‘além deste mundo’ que libertará a personagem e em simultâneo o assombra, dia e noite, até à exaustão."



"“O Estranho Caso de Angélica” é um filme denso e inesgotável, um desses raros que conseguem — e graças a simples truques de Méliès — interrogar o poder do cinema e a sua relação com a verdade e a mentira. É um ghost movie furioso, ainda que realizado por um homem cético que nos diz que, da morte, nada sabemos: “Pois ninguém de lá veio para a contar.” E, no entanto, Oliveira é extraordinário a fazer a mise en scène dos seus fantasmas. Seis décadas volvidas, “O Estranho Caso de Angélica” prova que teria sido a obra-prima dos anos 50 que o cinema português tanto precisou e não teve. A mesma obra-prima que é hoje." Francisco Ferreira, Expresso de 30/04/2011