15.6.11

Hadewijch
Título original: Hadewijch
De: Bruno Dumont
Com: Julie Sokolowski, Yassine Salime, Karl Sarafidis
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: ALE/FRA, 2009, Cores, 105 min.

Photobucket

"Há um momento em “Hadewijch”, ainda os seus mistérios vão a meio, em que Céline e Nassir (Karl Sarafidis) caminham numa floresta. Céline já abandonou há muito o convento em que a vimos pela primeira vez, e o jovem casal, enquanto marcha, discute o valor da religião e procura nela um sentido. Afirma-se que Deus é verdade e justiça, “ou uma espada contra a injustiça”, como Nassir conclui. Ninguém está a brincar aqui. Amor e violência, como o próprio Dumont o diz, são indissociáveis do seu cinema e da sua visão do mundo, e aquela espada, comum a todos os livros sagrados, é a história da Humanidade e do Ocidente. Céline, profundamente católica, e Nassir, profundamente muçulmano, formam um ‘ casamento’ espiritual improvável, irrealista, um desafio político que incomoda, pois coloca-se num patamar acima das convenções."

"É um casal que vai unir-se na mesma decisão tácita, na mesma atração pelo martírio. Sem o esperarmos (falamos ainda da sequência da floresta), chegamos com as personagens a Hadewijch, o convento em que Céline nasceu para a fé e cujo nome se confunde com o nome da protagonista (o título refere-se a Hadewijch de Antuérpia, religiosa mística do século XIII, autora de um “Livro de Visões” mergulhado em hermetismo medieval). Depois, há um daqueles momentos que são da ordem do milagroso: Julia Sokolowski olha para o céu e, como em certos planos de John Ford, do céu vem um rasgo de luz natural que a ilumina. Tudo evoluirá depressa a partir dessa luz. Céline deixará o convento, o apartamento parisiense, a amizade fraterna com Yassine, irmão de Nassir, e parte de repente com este último, já vestida de branco, para o Líbano e para o terreno da luta armada, onde um encontro com a Jihad a espera."

"Voltamos ao plano do céu. Não é a primeira vez que as personagens de Bruno Dumont, a um dado momento, levantam a cabeça e olham para cima à procura de um guia que as salve (do niilismo?). Dumont sempre perseguiu figuras que têm ‘acesso ao invisível’ através do mundo visível, pessoas com vontade de ver o que está mais além, mas nunca o cineasta francês tinha ido tão longe nesta demanda do ascetismo e da recusa do corpo, através de uma mulher “que não precisa de um homem, mas de Deus”. Perante Deus, Céline/Hadewijch engana-se, escolhe o caminho errado e suicida-se. Morre de amor por Deus e pela sua falta — e o amor, no cinema de Dumont, é uma transmissão quase impossível. Mas Céline, naquele final apaziguador que parece resgatado do Apocalipse, morrerá também, para renascer como Fénix das cinzas nos braços do homem (David) que sempre esteve perto dela. A revelação, afinal, estava mesmo ao lado e, como no cinema de outros místicos, foi longo o caminho que Céline teve de percorrer para encontrá-lo."

"Dumont acredita nesse caminho e no desejo de uma mulher em ser possuída pelo que não conhece — e esse desejo não é impermeável ao erotismo. Acredita no interior de um corpo e na experiência física da presença de Deus, no sentido do infinito que define os místicos: passamos o filme todo ‘no coração’ de Céline. Do que falamos? De um delírio? Em todo o caso, o delírio, que não se escreve por linhas direitas, é difícil de filmar e não convence assim do pé para a mão. Mas a mise en scène de Dumont a isso convida: e é um triunfo absoluto. Recusa o julgamento. Impressiona pela serenidade e pelo equilíbrio. Sidera pela sua humilde procura do sagrado — e depois diz-lhe adeus, aqui na Terra."



"Dumont pode não ser um cineasta crente, mas, no magnífico gesto estético de “Hadewijch”, acreditou numa coisa preciosa – no poder do cinema – e soube inventar a mais perturbadora “Pietà” de que há memória nos últimos anos." Francisco Ferreira, Expresso de 11/06/2011