13.3.12

Em Câmara Lenta + O Dia Mais Feliz da Tua Vida
Título original: Em Câmara Lenta
De: Fernando Lopes
Com: Rui Morrison, João Reis, Maria João Pinho
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2012, Cores, 71 min.

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"“Em Câmara Lenta” é uma adaptação livre para cinema do romance homónimo de Pedro Reis (ed. Aletheia, 2006), a partir de um argumento assinado por Rui Cardoso Martins. É o novo filme de Fernando Lopes, que muito apreciou o livro e até o comentou, considerando-o “um asteroide romanesco raro e surpreendente na literatura portuguesa.” Esta é a história de um homem, Santiago — e assim reza a primeira linha da sinopse — “que se deita ao mar para não voltar.” Há muito a dizer sobre aquele homem. Ainda mais sobre aquele mar. Mas sigamos lentamente (como esta câmara), pois a esse ritmo o filme convida. À partida, uma pergunta parecia impor-se sobre todas: que mar foi este, para Pedro Reis, que mar é este agora, para Fernando Lopes? Alguém muito próximo do cineasta nos provou depois, do outro lado da linha telefónica, que a pergunta não vinha do acaso: “Digamos que entre o Fernando e o mar há um longo e difícil desentendimento.” “Em Câmara Lenta” é um filme especial para Fernando Lopes e o preocupante estado de saúde atual do cineasta não lhe é fator alheio. Não estamos aqui para falar disso, apenas de um filme, embora haja coisas que condicionam necessariamente outras."

"Acrescente-se apenas que o cineasta que fez “O Fio do Horizonte” bem pode ter dito nos últimos tempos que viu o horizonte por um fio. E foi num breve encontro inesperado para nós, quando todas as hipóteses de conversa já pareciam barradas, que Fernando Lopes, em sua casa, nos esclareceu a dúvida de uma vez por todas: “Santiago, bon vivant, é afinal um tipo completamente fascinado pela morte. Ele tem a mania do mar e, de um mergulho a outro, à medida que se vai enganando a ele próprio, é na morte que ele pouco a pouco mergulha. Para mim, o mar sempre foi em simultâneo fascinante e aterrador. Uma espécie de morte líquida. Sinto-me à vontade para lhe dizer isto: eu nunca aprendi a nadar.” Passamos a Santiago (papel de Rui Morisson) e ao crawl deste filme. Nada que se farta, oceano adentro, Santiago. Aventura-se em mar alto. O filme nunca dirá o que faz ele da vida e é bem provável que o conforto que esta lhe deu lhe tenha permitido viver sem fazer coisa alguma. Ele é “o último sobrevivente de uma espécie de varões e marialvas”. Santiago é casado com Laurence (Maria João Luís). Tem uma amante que o adora acima de tudo e que adora botânica: chama-se Constança (Maria João Pinho). Frequenta bares de má fama onde encontra frequentemente Ma Vie (Maria João Bastos, a terceira Maria João do elenco). Em torno de Santiago há ainda Salvador (João Reis), seu boémio amigo que abraça amores perdidos com copos reencontrados — podem viver uns sem os outros? Começa logo pela manhã, Salvador, no balcão de um bar que é british e lhe serve de coro: é Salvador quem começa por estabelecer as ligações entre as personagens, no relato de um diário íntimo em que realidade e alucinação se confundem. Talvez a história de “Em Câmara Lenta” seja sua. Talvez sejam suas estas personagens, fantasmas que lhe surgem num momento da vida em que ele já aprendeu a dar outro valor à compaixão. Mas, como ele diz, “o que realmente interessa...” O que nos interessa?"

"As relações homem/mulher são há muito um assunto central no cinema de Lopes. Depois do ponto alto de “O Delfim” (2002), o aspeto (que consideramos) mais mundano dessas relações tem alimentado o seu trabalho recente: “Lá Fora”, “98 Octanas”, “Os Sorrisos do Destino”. “Em Câmara Lenta” vai noutro sentido. A simplicidade não pediu condimentos e reduziu o texto ao osso. O desenvolvimento das personagens é ténue e ‘descomplica-se’, por opção própria. Há momentos que se julgam difíceis de seguir: foi um sonho ou vimos mesmo Laurence, de espada em riste, a desafiar gaivotas debaixo de um rochedo da Praia da Adraga? O filme passa a correr e o crawl de Santiago não exigiu mais que 70 minutos de duração: algo ficou por escrever, por filmar? Mas há outro assunto a sublinhar aqui e que importa: o tratamento do tempo — que Fernando Lopes dinamita. Não vale a pena procurar no parágrafo anterior a cronologia narrativa que o filme não dá, pois é através de flashbacks constantes que vão surgir as cenas e a natureza das personagens. Por flashbacks somos levados à story, sob a forma de ‘aparições’ que ora recordam a estrutura de “Uma Abelha na Chuva” ora os duplos de “O Fio do Horizonte”, esse filme em que um homem vivo se descobria no espelho de um homem morto que era ele."

"Dorme pouco, Santiago. Sonhos obsessivos não lhe dão repouso. O filme instala cedo a sensação de que o tempo de Santiago é frágil — e é iminente a sua rutura. “Em Câmara Lenta” vive num tempo adiado, que é em simultâneo um tempo de pânico. Pânico de que o tempo acabe, ou pior ainda, pânico que os dias se repitam ad eternum: Santiago é um daqueles homens que sabem que os homens pouco mudam. Para os da sua casta, é coisa certa, sabida e provada. E neste filme em que andam ao contrário os ponteiros do relógio, como tomba o varão e marialva? Verga-se pela indiferença na sua relação com Laurence. Verga-se pelo desespero na sua relação com Constança, essa Flora sem Zéfiro à altura que, num ritual erótico que é um ritual de morte, prova o veneno de um amor que ela quis mas nunca conseguiu viver por inteiro. O que resta a Santiago? O destino do cherne do famoso poema de O’neill, que o filme cita e acaba com “solidão e mágoa”? O destino do mar? “Acho que hoje vou apanhar um peixe de sangue quente...”"

"Cineasta importante, cineasta único, cineasta vivo, Fernando Lopes realizou um filme crepuscular chamado “Em Câmara Lenta”. Começa com o som do mar vibrante e termina em silêncio de sepulcro, com uma espada sobre cinzas. Uma câmara ardente? Não deixamos as ideias por aqui. É preciso voltar a um mar que se abre à ficção e liberta a realidade de Santiago dos seus limites. A um tempo que eclode e desvanece, de notas soltas. Neste tempo plural, labiríntico, o que Fernando Lopes constrói é um túmulo para Santiago. Um túmulo em que cabem sonhos e pesadelos, festas e desfeitas, a embriaguez e a ressaca do seu coração."



"“Em Câmara Lenta” é um filme que pergunta: quem somos nós e por que nos tornámos objetos de nós próprios? Objetos de cobiça e indiferença, objetos de incompreensão e de terror? Não fomos, afinal, neste infinitésimo de mundo que somos, os nossos maiores inimigos? Consciente do seu destino, Santiago desce ao fundo do desejo. Fernando Lopes filma-o com compaixão, em posição fetal, naquela imensidão de mar que é afinal um espaço uterino. É por isso que “Em Câmara Lenta” não nos parece o filme de um termo. Antes o filme de um reencontro, de uma reconciliação." Francisco Ferreira, Expresso de 10/03/2012