28.4.12

A Vingança de Uma Mulher
Título original: A Vingança de Uma Mulher
De: Rita Azevedo Gomes
Com: Rita Durão, Fernando Rodrigues, Isabel Ruth, Francisco Nascimento
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2012, Cores, 100 min.

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"Numa altura em que, à força de prémios, o novo cinema português parece suscitar no público nacional uma curiosidade (ou condescendência?) que prima pela raridade, convém chamar a atenção para aqueles que, por cá — e quase sempre à margem do reconhecimento —, desde há muito têm vindo a forjar caminho em terreno adverso. Entre esses, um dos nomes mais injustamente esquecidos é, sem dúvida, o de Rita Azevedo Gomes, autora de um corpo de trabalho consistente — mas intermitente — que, ao longo dos últimos vinte anos, se desdobrou em quatro longas (entre ficções, experiências e documentários) que vale a pena (re)descobrir. Com “A Vingança de Uma Mulher”, a cineasta regressa às longas de ficção após um interregno de quase uma década, oferecendo-nos um filme de época e de estúdio (coisa invulgar no cinema português) que atesta bem da extensão do seu talento. Mas vamos por partes."

"Adaptação do conto homónimo de Barbey d’aurevilly (1808-1889), o filme cativa-nos, antes de mais, pela inteligência com que desmonta e expõe a complexa estrutura do texto, ao mesmo tempo que reflete sobre as ilusões que produz. Prova disso é a sua primeira sequência, onde, seguindo os passos de um narrador literário que se integra como personagem na representação, a câmara percorre em travelling os bastidores de um estúdio que desde logo se assume como o lugar de um simulacro de ficção. Depois, a porta do estúdio fecha-se e, antes de sair de cena, o narrador passa o testemunho (isto é, o encargo da narração) à figura sobre a qual nos falava: a de Roberto (Fernando Rodrigues), um dândi impassível que, num exterior oitocentista recriado através de cenários antinaturalistas, vai desfiando em off um monólogo interior cuja ligeireza atraiçoa o tédio daqueles que já nada esperam do jogo social burguês. A sequência seguinte (uma das poucas filmadas fora do estúdio e dominada pela distância dos planos médios) comprova-o: as conversas de circunstância aborrecem--no, o fausto dos salões sufoca-o."

"Escravo da sua própria indiferença, Roberto sê-lo-á até à noite em que, numa esplanada, uma mulher (Rita Durão) retém a sua atenção. Ela evade-se, ele segue-a, reencontra-a e troca com ela um par de palavras que o fazem crer estar na presença de uma prostituta. De resto, a suposição parece deixar-se confirmar quando ela o conduz até ao seu quarto — câmara de volúpia pintada de cima a baixo num vermelho sanguíneo que augura a consumação de uma alma nas chamas do inferno. E, desta vez, pelo menos, as aparências não iludem: pois esse quarto (onde a câmara se encerrará durante largos minutos) servirá de palco à diabólica confissão de uma duquesa que, num ritual autofágico, se dedica à prostituição para se vingar do marido (que mandara arrancar o coração ao único homem que alguma vez ela amara)."

"O que se segue é o relato, na primeira pessoa, do trágico trajeto de uma personagem moralmente paradoxal (porque se eleva no próprio gesto em que se rebaixa), onde a violência torrencial das palavras é quem mais ordena. E o que ordena ela? A construção de um exercício de rememoração, cuja brutalidade e fluidez a realização potencia de modo notável: ora conjugando a continuidade do plano-sequência com um rigoroso trabalho cenográfico para transitar, sem cortes, entre diferentes espaços e tempos narrativos; ora recorrendo a uma escala de planos mais rente aos corpos para nos tornar cúmplices do horror da duquesa; ora usando os espelhos do quarto para, em mise en abyme, acentuar a queda da personagem no abismo da sua memória; ora, ainda, socorrendo-se da sua banda sonora clássica para refrear ou reforçar o pathos."

"Não vale pois a pena dizer — como muitos dirão — que o que aqui temos é uma ‘amostra de teatro filmado’: porque, neste caso, é justamente através dos movimentos de câmara (bem como, é claro, da fotografia, da representação...) que as palavras de Aurevilly entram em combustão, reconquistando uma espessura e uma profundidade que, no fundo, sempre foram suas."



"E quanto ao desfecho desta viagem ao fim da noite (e ao fim do nojo)? Escusado será dizer que nada diremos. A não ser isto — que dela saímos como Roberto, isto é, tropeçando, atónitos, pelas pedras da calçada, com a memória do abismo gravada a estilete no rosto. “Veja. E lembre-se do que vê”, diz a certo ponto uma duquesa transfigurada pela raiva a um Roberto petrificado. Nós, pela nossa parte, não nos esqueceremos tão cedo desta diabólica “Vingança”." Vasco Baptista Marques, Expresso de 31/03/2012