15.5.12

Temos de Falar Sobre Kevin
Título original: We Need to Talk About Kevin
De: Lynne Ramsay
Com: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller
Género: Drama, Thriller
Classificação: M/16
Outros dados: EUA/GB, 2011, Cores, 112 min.

"No princípio do novo filme de Lynne Ramsay tudo está tão confuso, tão convulso, tão encrespado, o tempo está de tal maneira histérico que dir-se-ia que o filme se passa na cabeça de alguém em profunda crise emocional, narrativa interior. Pressentimos que algo de inimaginavelmente horrível terá acontecido para que o mundo se tenha posto a não fazer sentido, atacado por um furor sem explicação. A história de Eva, a mulher que, durante todo o filme está no seu centro, começa por ser um enigma em forma de puzzle que vamos encaixando com paciência, mas nunca com a noção de que a realizadora nos está a pôr em trabalhos forçados. Muito ao contrário, corremos atrás da explicação, da peça que falta e faça com que o padrão se complete e se mostre por inteiro, sentimos a urgência de uma revelação que nos apazigue, talvez na esperança de que a descoberta de uma coerência global apazigue também aquela protagonista que sentimos exangue e com quem nos identificamos mesmo antes de saber quem é e o que passou (trabalho abissal de Tilda Swinton, rosto cavado, dor surda)."
"Depois, as peças começam a organizar-se e o que era uma inquietação pelo desconhecido transforma-se no horror do que vemos edificar-se — sagaz mudança de processos de Lynne Ramsay. Eva tem um filho. Um filho que chora para lá da razoabilidade em bebé, como se fosse um castigo para a mãe; um filho que cresce recusando-se a falar, numa resistência à sociabilidade, que usa fraldas muito para lá do que é compreensível — e o nojo da mãe ao limpá-lo é uma agressão do miúdo sobre ela; um filho que se torna um adolescente rebelde e, depois, um jovem perigoso. Tudo sem qualquer explicação — o Mal existe, para lá da Psicologia, e da Sociologia. E o marido de Eva (formidável interpretação de John C. Reilly, prodigioso de moleza, de ternura espapaçada, de cegueira) nem se dá conta. Até que tudo explode. E da monstruosidade que o filho desencadeia, ela sente-se responsável — e os seus concidadãos também a responsabilizam. A cena em que é esbofeteada na rua, o modo como limpa, tenazmente, a tinta vermelha que lhe atiraram sobre a casa ou a aceitação dos ovos partidos e o gesto expiatório com que come a omoleta que com eles prepara, tirando sucessivos pedaços de casca da boca, são terríveis sinais da interiorização da culpa. Razoável, irrazoável?"
"É sobre essa culpa que “Temos de Falar sobre Kevin” nos força a olhar, porque nos atira com o irremediável e nos coage a pensar no que poderia ter sido feito. Desespera-nos na impotência parental de promover uma educação (porque educar é, sempre, constranger), sem, todavia, fazer acusações a quem quer que seja. Provoca o nosso assombro e convoca-nos para uma tomada de posição. É o mais radical filme sobre educação que me lembro de ter visto. Porque Kevin, a criança problemática, o filho de Eva é, como o bebé de Rosemary do filme de Polanski, uma semente do Diabo na existência quotidiana, uma criatura de abominação. Mas, em Polanski, havia a hipótese de a maquinação infernal ser mesmo verdade. Aqui, não! Aqui estamos reduzidos ao humano, ao que somos, sem Deus, sem inferno, sem salvação fora de nós. Kevin é o Mal gerado aqui. Ferida irremediável: Eva ama Kevin, para lá de tudo." Jorge leitão Ramos, Expresso de 05/05/2012