16.6.12

As Neves de Kilimanjaro
Título original: Les Neiges du Kilimandjaro
De: Robert Guédiguian
Com: Adrien Jolivet,  Anaïs Demoustier,  Ariane Ascaride,  Gérard Meylan,  Grégoire Leprince-Ringuet,  Jean-Pierre Darroussin,  Marilyne Canto
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: França, 2011, Cores, 150 min.



"Não vale a pena procurar, no novo Guédiguian, por traços do conto homónimo de Hemingway. A sua fonte de inspiração é outra: um poema de Victor Hugo (“Les Pauvres Gens”) onde, à evidência da miséria, responderá uma infinita exigência de justiça e generosidade. Pois bem: dessa exigência serão figuras, no filme, os dois membros de um casal de operários de meia-idade da Marselha dos nossos dias (a cidade de nascença e de eleição de Guédiguian). Ele (Darroussin) é um fervoroso mas afável sindicalista que, na primeira sequência, será despedido do estaleiro naval onde trabalhava há trinta anos; ela (Ascaride) é uma empregada doméstica cujo olhar compassivo parece adequar-se facilmente aos reveses da vida."
"O que se segue é o paciente retrato de um quotidiano de bairro feito de pequenos rituais (soirées com os amigos, almoços em família...) onde os prosaicos gestos do casal se deixarão dinamizar por um sonho: o de pôr a uso os bilhetes de avião para a Tanzânia que um grupo de amigos lhe ofereceu. Mas, da Tanzânia (e dos nevados cumes do Kilimanjaro que a popularizaram no nosso imaginário), as personagens não verão mais do que as miragens dos folhetos turísticos. De facto, uma noite, elas serão assaltadas em casa por dois homens armados que lhes roubarão os bilhetes. Ora, este episódio traumático abrirá, de súbito, uma ferida na visão humanista e otimista do mundo de um casal que, até então, se encontrara perfeitamente integrado na vida do seu bairro. E a ferida agravar-se-á com a descoberta de que um dos assaltantes é um jovem ex-colega de Darroussin que, tendo sido despedido ao mesmo tempo que ele, faz das tripas coração para assegurar a subsistência dos irmãos mais novos."
"Da análise dos efeitos que resultam desta crise ocupar-se-á o resto do filme, que, a partir daí, submeterá as personagens ao purgatório da antítese, ou seja: a um lento processo de cicatrização e readaptação, onde, para resistir, os seus ideais terão de transformar as evidências da realidade que os desmente. E, neste quadro, o que nos comove é o modo generoso como, recorrendo à memória do realismo lírico francês dos anos 30, Guédiguian abraça, sem distância ou parti pris sociológico, o ponto de vista fragilizado (mas igualmente generoso) das personagens, investindo-as de uma dimensão ao mesmo tempo épica e quotidiana que as eleva, sem cair no erro de as expurgar de ambiguidades morais (ao invés do que acontecia no “Le Havre” de Kaurismäki, onde, aliás, a solidariedade política era um dado, e não um ideal a construir). De resto, é do desejo de surpreender as contradições das personagens que parece nascer a atenção dada pelo filme aos jogos da luz, que, aqui, será quase sempre a luz de um sol nascente ou poente, isto é: uma luz ambígua que espelha bem a indecisão daqueles que não sabem se hão de acreditar nas promessas da manhã ou nos abismos da noite."

"Dir-se-á — e com razão — que nem tudo sai bem ao filme de Guédiguian (cujo tom expressamente naïf o trai, por exemplo, naquela sequência final de síntese, que levanta mais questões do que aquelas que resolve). Certo. Mas o seu olhar é a tal ponto generoso que, no fim, ficamos quase convencidos que os nevados cumes do Kilimanjaro (e a aventura que eles nos prometem) estão mesmo ao virar da esquina. Quase acreditamos, com Victor Hugo, que, para um coração sincero, haverá sempre “qualquer coisa que irradia através desse crepúsculo obscuro”." Vasco Baptista Marques, Expresso de 09/06/2012