10.6.12

Cosmopolis
Título original: Cosmopolis
De: David Cronenberg
Com: Robert Pattinson, Jay Baruchel, Juliette Binoche, Samantha Morton, Paul Giamatti, Mathieu Amalric
Género: Drama
Classificação: M/16
Outros dados: EUA, 2012, Cores, 108 min.


"Comecemos pelo genérico do novo Cronenberg (que adapta o romance homónimo de Don DeLillo). Vemos uma série de jatos de tinta que, como numa tela de Pollock, compõem uma amálgama frenética de linhas de cor que se sobrepõem. É o prenúncio de uma crise de sentido (a nossa) que, à imagem da action painting, ameaça explodir por saturação. Pois bem: é em busca de uma figura capaz de dar corpo a essa crise que, na primeira sequência, a câmara partirá em travelling, seguindo uma fileira de limusinas estacionadas em Wall Street e focando, por fim, o rosto de Eric Packer (Pattinson, sempre sofrível), um jovem tubarão da alta finança que, a partir daí, acompanharemos até ao final. O que se segue obedece, em rigor, à estrutura narrativa do romance de DeLillo, que, contraindo o espaço (uma limusina, quase sempre) e o tempo (um dia) da ação, nos fazia assistir ao périplo de Packer pelas intransitáveis ruas de uma Nova Iorque em estado de sítio (há manifestações contra o grande capital em cada esquina). O seu objetivo? Cortar o cabelo, enquanto, à sua volta, a ordem do mundo se desfaz. "
Trata-se aqui (como nos melhores Cronenberg) de uma viagem de desintegração onde as personagens operam menos como indivíduos do que como veículos de uma infeção que as vai corroendo por dentro, no caso: a do cibercapitalismo que contamina a visão do mundo do protagonista, transformando-o num mero sucedâneo de uma bolsa de valores. Ora, a história desta infeção terá como palco central a luxuosa limusina que conduz Packer pelas ruas. Espécie de extensão tecnológica de um corpo que encarna em si o espírito do capitalismo, a limusina, rigorosamente insonorizada, constitui um espaço assético e impermeável ao exterior que espelha bem o perfil autista de uma personagem que, como regente do reino imaterial do mercado (é assim que Cronenberg a filma), só conhece um desejo: ‘mais’. Desejo infinito que vai passando de objeto em objeto sem nunca se saciar, essa compulsão pela maior quantidade possível orientará, de resto, o sentido dos vários encontros (sexuais, de negócios...) que, dentro e fora da limusina, Packer terá com um leque de figuras espectrais (analistas financeiros para ‘mais’ riqueza, médicos particulares para ‘mais’ saúde...) que lhe devolvem o reflexo do que ele é: um parasita chique do capital que, como diria Wilde, “sabe o preço de tudo e o valor de nada”. “Quanto custa a capela de Rothko?”, pergunta ele a páginas tantas a uma vendedora de arte...

Mas, apesar da sua perfeita leitura do Zeitgeist capitalista (que, no fundo, é a de DeLillo), “Cosmopolis” não está isento de problemas. De facto, como vem acontecendo desde “Uma História de Violência” (2005), aqui é sobretudo a palavra (e não já a câmara ou os décors) que se encarrega de ‘aprofundar’, governando assim uma mise en scène que, para acompanhá-la, tem de apostar forte no jogo dialético dos campos-contracampos. É, aliás, o próprio Cronenberg quem, nas entrevistas, admite ter construído o argumento como uma sucessão de diálogos (fielmente extraídos, diga-se, do livro de DeLillo). E isso nota-se, ficando-se às vezes com a sensação de que o cineasta se limitou a criar um décor capaz de servir de fundo aos diálogos. Daí, talvez, o bocejo que provocou a última sequência, onde, já sem a muleta cénica da limusina, Cronenberg nos oferece um diálogo filmado cujas inflexões a câmara vai seguindo sem traços notáveis de inventividade. Ora, esse final é uma prova — a prova de que, a despeito do fôlego retórico de “Cosmopolis”, o cinema de Cronenberg já conheceu melhores dias. Vasco Baptista Marques, Expresso de 02/06/2012
"Quando a mulher do protagonista de “O Festim Nu” (1991) se começa a injetar com pó para as baratas, sentimos que o cromatismo desviante em que o filme nos mergulha (amarelos fortes, verdes corruptos) faz inteiro sentido. E nem nos espantamos muito quando começam a aparecer desconformes insetos falantes ou criaturas reptilíneas, porque todo aquele universo retro, embora liminarmente parecido com o nosso, é decerto uma coisa mental, um lugar intestino, um delírio.

Longe iam já os monstros físicos implantados no interior do corpo, como as criaturas vermiformes sexualmente transmissíveis de “Os Parasitas da Morte” (1975), a raiva inoculada por uma mulher que, após uma intervenção cirúrgica de reconstrução, só se alimenta de sangue através dum espigão que sai do sovaco para sorver as vítimas em “Coma Profundo” (1977), ou mesmo os terríveis poderes psíquicos assassinos de “Scanners” (1981) ou o corpo transformado de James Woods em “Experiência Alucinante” (1983), onde se anunciava uma espécie de corpo novo, de carne videástica — cem anos que viva nunca esquecerei a primeira vez que a barriga do ator se abre numa fenda para lá caber uma videocassete. A primeira fase da obra de Cronenberg — filiada no género ‘filme de horror’ — é de um pânico íntimo de algo que nos rasga, nos muda, nos assombra, como se o corpo se pudesse tornar uma coisa irreconhecível. Essa fase culmina na que continua a ser a sua obra mais frequentada, porque produzida para uma major americana — “A Mosca” (1986) —, em que os corpos do homem e da mosca se fundiam em extrema abominação, requiem pela condição humana.
 
Depois, o cinema de David Cronenberg infletiu e passou para um patamar superior. Em vez do corpo que se esfacela, o cineasta passa a olhar o corpo que engendra prodígios impalpáveis. E temos o par de gémeos ginecologistas de “Irmãos Inseparáveis” (1988), literalmente obcecados pela beleza interior das mulheres — e quando se diz ‘interior’ é para ser tomado à letra, já que alma é coisa que este autor nunca deu a ver nem perseguiu. Nem alma, nem Deus, nem fantasmas ou seres de um outro mundo. A obra de Cronenberg é materialista, nela não há mais nada do que vida e morte sem lado de lá. Para observar a beleza oculta, os dois irmãos inventam instrumentos médicos inimagináveis que nunca vemos em uso mas que mais parecem medievais e misteriosos utensílios de tortura. E o medo do espectador deixa de ser marcado por aquilo que sabe e projeta-se naquilo que congemina.
 
Por outro lado, a sexualidade, que desde sempre fora uma componente deste cinema, cresce e afixa-se no primeiro plano dos filmes como elemento perturbador. É a vacilação de género (um homem que se apaixona por outro homem quando vestido de mulher, consciente do logro, mas recusando afirmar a descoberta perplexa do homoerotismo) em “M. Butterfly” (1993). É o sexo armadilhado com próteses que compensem mutilações, delírio entre a carne e o aço, nesse fabuloso “Crash” (1996), o filme de Cronenberg mais impossível de se deixar normalizar. É a deriva amorosa numa realidade que já se não sabe se tem âncora ou se está simplesmente a vogar num espaço virtual, a fusão do corpo com a torrente de informação cibernética em “eXistenZ” (1999).
 
Chegamos depois à fase das máscaras. Ao lugar em que os corpos, capelas sempre imperfeitas para albergar a integridade do que cada um de nós é, se revelam películas a ocultar verdades que podem tomar formas extremas. A começar em “Spider” (2002) e na teia de uma mente que procura orientar-se no que foi pavor e deceção, a prosseguir no assassino escondido no âmago do protagonista de “Uma História de Violência” (2005), no mafioso de “Promessas Perigosas” (2007) ou nas figuras históricas de Carl Jung, Sabina Spielrein e Sigmund Freud — em “Um Método Perigoso” (2011) —, tudo gente com indizíveis realidades encobertas, em rota de colisão com a normalidade. Que Cronenberg encontre agora o demónio financeiro que está dentro do protagonista do romance de Don DeLillo “Cosmopolis”, eis o que parece uma jornada lógica num dos mais atentos e inquietantes cineastas do nosso tempo." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 02/06/2012