17.6.12

O Cavalo de Turim
Título original: The Turin Horse
De: Béla Tarr, Ágnes Hranitzky
Com: János Derzsi, Erika Bók, Mihály Kormos
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: SUI/FRA/ALE/HUN, 2011, Cores, 146 min.



"A estreia comercial em Portugal de “O Cavalo de Turim”, vencedor do grande prémio do júri em Berlim 2011, é um acontecimento que desafia a estatística. De facto, durante quase 35 anos — e à exceção da edição em DVD de “O Homem de Londres” —, o trabalho do cineasta húngaro viu-se confinado, por cá, ao circuito dos festivais (e a uma retrospetiva na Cinemateca). Ora, a conjugação desta estreia com o lançamento em DVD (previsto para breve) da obra completa de Tarr convida-nos a retraçar o sentido de um percurso que, desde o seu encontro com a escrita de László Krasznahorkai (o romancista que, desde 1988, assinou todos os argumentos do cineasta), seguiu um trajeto de progressiva depuração."
"Entenda-se: as histórias de Krasznahorkai são sempre as da impossível fuga de personagens cativas de um tempo de repetição, sem progresso ou horizonte, que, por força de uma esperança ilusória, se põem em marcha, desferindo círculos sobre si mesmas para fatalmente regressarem ao seu ponto de partida (era assim com o Karrer de “Perdição”, com os camponeses de “O Tango de Satanás”...). Pois bem: para filmar este tempo satânico que subsiste após a erosão das grandes utopias (políticas, metafísicas) e onde o desenvolvimento narrativo se tornou impossível, Tarr introduzirá nas suas obras uma duração claustrofóbica e incompressível (a que lhe é dada pela continuidade dos longos planos-sequências) que acentua o enquistamento dos corpos num espaço sem ponto de fuga."
 "Trata-se aqui de uma duração despida de acontecimentos através da qual o cineasta procura surpreender a vida na sua nudez quotidiana, retendo apenas a presença dos corpos que se confrontam com a impossibilidade de uma história, com o fim dos sistemas teóricos que englobavam o real para lhe dar um sentido. É neste quadro que deve ser entendido o novo filme de Tarr e, desde logo, a referência a Nietzsche que o seu prólogo comporta. O que temos, aí? Um plano a negro atravessado por uma narração em off que detalha o episódio biográfico que, alegadamente, teria constituído um prenúncio da demência e do silêncio que marcaram os últimos anos de Nietzsche."
"Resumindo: na Turim de 1889, Nietzsche presencia o chicoteamento de um cavalo por parte do seu cocheiro e acorre ao local para pôr fim à cena, agarrando-se então em lágrimas ao pescoço do animal. E se, pelo anúncio da morte de Deus e do fim da metafísica, Nietzsche é, sem dúvida, o profeta do fim daquele tempo cuja autópsia as obras de Tarr têm vindo a realizar, o primeiro gesto do cineasta consistirá em desviar o nosso olhar de Nietzsche para os figurantes anónimos da história, forçando-nos a seguir, a partir daí, o destino do cavalo e do cocheiro."
"Assim, no início do filme (uma vez mais fotografado num magnífico preto e branco por Fred Kelemen) assistiremos à instalação do universo onde decorrerão os escassos acontecimentos da narrativa, um universo sem coordenadas topográficas ou cronológicas precisas, dominado por um espaço minimalista (a pobre e isolada casa rural onde o cocheiro vive com a filha e de cujas imediações a câmara nunca sairá) e por um tempo elementar: o da repetição dos momentos — marcada não já pela chuva (como em “Perdição”) mas pelos incessantes uivos de um vento cataclísmico que penetra pelas paredes ou, em alternativa, pelos repetitivos acordes de órgão e violoncelo da banda sonora de Mihály Vig."
"O que se segue é uma crónica dos seis dias da extinção deste universo que parece inverter a crónica bíblica dos seis dias da criação. A esses seis dias corresponderão os seis capítulos do filme, estruturados em função de um ritmo binário de repetição e diferença, onde o eterno retorno do mesmo, onde os gestos quotidianos reproduzidos ao infinito pelas lacónicas personagens (acordar, comer, dormir...) serão em cada caso perturbados pela irrupção de uma novidade (o silêncio dos insetos, a imobilidade do cavalo, a chegada dos ciganos, a falta de água, a extinção da luz...) que, ao mesmo tempo que prenuncia a chegada do fim, os convida a encetar uma fuga desesperada. Decisiva, neste ponto, será a entrada na casa (ao segundo dia) de um velho profeta nietzschiano que se senta à mesa da família para nos oferecer um genial monólogo que, em suma, nos diz apenas isto: o tempo das grandes ficções terminou (“já não há, nem Deus, nem deuses, nem bem, nem mal”)."
"Tudo o que sobra são as ruínas provocadas pelo vento (“o vento arruinou tudo”) que, segundo o profeta, representa não um cataclismo natural mas a metáfora física de um tempo corrompido (o nosso), de uma ausência de horizonte que resulta da apropriação e destruição, por parte do homem, “de tudo o que é excelente, grande e nobre”. “Tocar, adquirir, degradar”: a isto se reduz, diz-nos o velho, a história de um mundo que se divide entre vencedores e vencidos, isto é, entre os que tudo possuem (da terra ao céu, passando pelos sonhos) e os que nada têm. Contra este mundo onde a mudança se tornou impossível (porque aqueles que têm se apropriaram de tudo) e onde apenas nos resta a fatal repetição dos momentos (que condena todas as coisas à extenuação), as personagens do filme continuarão a resistir, afirmando dia após dia o seu apego a uma humilhada vida sem promessas que só extrai o seu valor de si mesma. É por isso que, aqui, não se filma o fim do mundo mas antes — e isso faz toda a diferença — a nossa resistência a um mundo já acabado, a nossa capacidade de, lado a lado com as personagens, continuarmos a acender, contra a evidência da extinção, as luzes que se apagam." “Rage, rage, against the dying of the light”: é subscrevendo o sentido do verso de Dylan Thomas que Tarr encerra, então, um notável percurso que, a seu tempo, será por certo reconhecido como um dos mais coerentes e profundos que a história do cinema guarda memória. De resto, percebe-se que o cineasta abandone o barco da realização num momento em que a lógica do mercado (a do vento e a da sua erosão) vota ao desaparecimento os poucos que, por sua conta e risco, insistem em desafiar o conforto burguês do público. É preciso resistir, diz-nos Tarr no último dos seus filmes. Certo. Mas ele também nos disse, há trinta anos (em “Prefab People”), que “quando já não se consegue distinguir as nuvens do céu do fumo das fábricas, é hora de partir”. Vasco Baptista Marques, Expresso de 16/06/2012