17.8.12

4:44 Último Dia na Terra
Título original: 4:44 Last Day on Earth
De: Abel Ferrara
Com: Willem Dafoe, Shanyn Leigh, Natasha Lyonne
Género: Drama, Ficção Científica
Classificação: M/16
Outros dados: SUI/EUA/FRA, 2011, Cores, 85 min.



"Não se sabe bem porquê, nem interessa muito. Às tantas fala-se no buraco de ozono, na razão que Al Gore teria, como agora se está a ver, o facto é-nos apresentado irrefutável, inevitável e, mais estranho que tudo, interiorizado, aceite: o mundo acaba esta noite, às 4h44, a ciência consegue o milagre da previsão com rigor, mas nada pode fazer para evitar o Apocalipse. Filmar o fim do mundo não é exatamente coisa nova e haveria com que nos surpreender se Abel Ferrara tivesse, de repente, sentido vontade de encenar um cataclismo planetário."
"Mas não, Ferrara tem passado a vida a pôr em cena catástrofes, mas humanas, ao nível dos indivíduos, os seus protagonistas sempre à beira do colapso, numa correria para diante, às vezes perseguindo objetivos, às vezes em pura deriva quando não em fuga de si próprios. De maneira que o último dia não é diferente do dia antes, do dia de hoje, de outro dia qualquer, há mesmo um pivô de telejornal a dar as notícias com a habitual imperturbabilidade, restaurantes chineses que entregam comida em casa e tudo mais."
"Claro que há uma multidão sem fim na Praça de São Pedro em oração e procissões com velas neste lugar e no outro — mas isso não é matéria fora do comum, como provam as imagens de arquivo que Ferrara usa e que a televisão emite no apartamento de Cisco (Willem Dafoe) e Skye (Shanyn Leigh) no Lower East Side de Manhattan, Nova Iorque (território matricial do cineasta). Eles estão a viver aquele dia tentando uma dignidade qualquer de que não sabemos os contornos inteiros mas de que nos vamos apercebendo na insistência dele em fazer a barba, na persistência dela em pintar uma derradeira tela espalhada no chão do estúdio. Fazem amor, ele fala pelo Skype com a filha, tem mais uma discussão com a ex-mulher e, ex-toxicodependente que há dois anos não consome, vai tentar uma última alucinação, antes de se aperceber que é melhor ficar de olhos abertos quando a aurora boreal verde chegar, à hora do lobo."
"É possível aceitarmos aquele dia derradeiro para Cisco e Skye, é muito mais difícil interiorizar a serenidade do mundo todo. Ferrara ousa, em “4.44 Último Dia na Terra”, agarrar o impossível. Mas fá-lo com uma agilidade e um talento tão puramente cinematográficos que nos impele à rendição. Veja-se a cena em que eles começam a dançar, a cumplicidade, a alegria temperada por um tom de crepúsculo, cansaço, depois quase contrição e veja-se como Ferrara filma, em poucos planos, integrando a cama, a secretária onde ele escreve, o espaço onde ela pinta, todo o mundo interior que lhes importa. E atente-se como engrena na cena seguinte, com uma panorâmica sobre a rua apanhando Dafoe no caminho, depois seguindo-o na constatação de que, lá fora, tudo normal, há um homem que se suicida, mas até isso é normal, tal como a aflição que Cisco exprime. Olhe-se e entenda-se que nessas duas cenas há mais cinema a acontecer que em muitos filmes inteiros que estreiam aí todas as semanas, porque em ambas há imagens, sons e durações que se interligam e significam para lá do que materialmente cada imagem mostra, cada som concretiza."
"É por isso que, mesmo sendo um filme onde as imperfeições se veem, “4.44 Último Dia na Terra” quase consegue o sortilégio de nos convencer que o mundo pode acabar não em correria, mas como quem se rende a Deus, num abraço, um homem e uma mulher aceitando que se têm um ao outro, como os amantes encontrados em Pompeia." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 11/08/2012