23.8.12

O Coração da Tempestade
Título original: The Eye of the Storm
De: Fred Schepisi
Com: Charlotte Rampling, Maria Theodorakis, Geoffrey Rush, Judy Davis
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: Austrália, 2011, Cores



"Há uma senhora australiana muito rica (Charlotte Rampling), praticamente confinada ao leito, um acidente vascular cerebral para aí a enviou, quase obliterando a sua natureza um bocadinho devassa, um bocadinho cruel, autoritária, antes de mais sobre si própria no que isso quer dizer de decidir sobre os caminhos da sua vida, mas também sobre os outros. Está à beira de morrer. Convoca, por isso, os filhos com quem tem uma relação distante que o facto de eles viverem na Europa fisicamente explicitou. Basil (Geoffrey Rush), em Londres, é um ator em decadência, homme du monde por quem as atrizinhas continuam prontas a ceder às libidinosas aproximações, as mais das vezes inconsumadas por incapacidade — o passar dos anos não perdoa... Dorothy de Lascabanes (Judy Davis), em Paris, ganhou o apelido e o título de princesa por casamento, tornou-se insolvente por consequência de divórcio — e vive no alento da boa vontade da mãe e da herança provável. A velha senhora tem uma criada alemã (Lotte/Helen Morse) que já passou a idade mas que, ainda assim, à noite, se transmuta em atriz de cabaret berlinense anos 20 para divertimento da patroa — ambas se lembrando que toda a música pára quando os nazis chegam. E há uma enfermeira impudente (Alexandra Schepisi) e outra devota. O filme instala, desde o princípio, uma postura de comédia sofisticada, temperada de drama, ma non troppo. É o primeiro dos seus enganos, a primeira sedução."
"E há, logo, uma coragem incomum: a de Charlotte Rampling se deixar filmar envelhecida (muito mais envelhecida do que na realidade), encanecida, decadente, um pouco ridícula até, sabendo nós que quando o personagem se mostra, a atriz não está escondida, mas exposta também. Há também a coragem de não fazer do personagem — central, adulto, o único inteiramente vertebrado e com quem o espectador se pode identificar — alguém exemplar, um modelo, antes deixar que sobre ele desça, também, o véu de uma ignomínia que, no fim do filme, nos desvelará as máscaras em que todos os personagens se acoitam. E é esse aceleramento para uma espécie de infâmia branda que se derrama sobre aquela família, os serviçais, os que andam à volta — que sei eu? o mundo... — que faz passar este filme da ligeireza para um ocaso onde o peso da tragédia se impõe. Vidas sem amor, pessoas sem esperança, a vanidade como modo de existência, a cupidez como motor, o que este filme, na aparência leve, comédia dramática, artificiosa, nos convoca é uma realidade que não tem nada de amável, róseo, verdadeiramente divertido." "A sua magia é precisamente essa, a de saber caldear géneros, murmurar sentimentos, envolver o espectador numa dança que simula frivolidades, mas nos mergulha nas matérias essenciais de que a vida é feita: amor, convenções, poder, sexo, teatro — dinheiro também, evidentemente. Essa magia ancora numa crença firme no argumento e no trabalho dos intérpretes. E que intérpretes: além da divina Charlotte Rampling, Judy Davis é reptilínea e desamparada, Geoffrey Rush é espaventoso e imaturo, Helen Morse é divertida e funesta, Alexandra Schepisi (filha do realizador) é maliciosa, premeditada e de uma ingenuidade que magoa — todos a definir personagens num choque de contrastes que faz com que “O Coração da Tempestade” seja um filme onde as previsibilidades, mesmo quando se confirmam, jamais acontecem segundo uma linha aprumada. Porque a vida é complexa, os seres humanos não são unívocos e a morte nunca tem panache." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 18/08/2012