19.1.13


00:30 Hora Negra
Título original: Zero Dark Thirty
De: Kathryn Bigelow
Com: Chris Pratt, Jessica Chastain, Joel Edgerton
Género: Drama, Acção
Classificação: M/16
Outros dados: EUA, 2012, Cores, 157 min.



"Da última vez que estivemos com Kathryn Bigelow (“Estado de Guerra”, 2008), a cineasta instalou-nos nas ruínas do Iraque para nos transformar em testemunhas de uma obsessão: a “guerra ao terror” (representada como uma operação de limpeza do território que, à maneira de um vício, se apoderava da alma de um soldado e, através dele, da alma da América). Pois bem: em articulação com o seu antecessor, o novo filme de Bigelow (que se encontra nomeado para cinco Óscares, entre os quais os de Melhor Filme e Melhor Atriz) assume-se claramente como a segunda parte de um díptico sobre a cicatrização das feridas abertas pelo 11/9 na consciência americana. Mas vamos por partes."


"“00:30 Hora Negra” arranca, justamente, com a enunciação do trauma que — ao longo de duas horas e meia — a ação das personagens tentará reparar: o 11/9 (figurado, no primeiro plano, por um ecrã a negro que vem ser habitado pelas últimas palavras de algumas das vítimas dos atentados). Depois, uma elipse de dois anos implanta-nos em 2003 para, algures no Médio Oriente, nos apresentar à protagonista do filme: Maya (magnífica Jessica Chastain), uma jovem agente da CIA que integra a equipa encarregada de proceder, in loco, à perseguição, detenção e interrogação dos supostos membros da Al-Qaeda (já lá vamos). O que se segue, até final, é um thriller ‘todo o terreno’ que, durante um período de oito anos (2003-2011), vai viajando entre o Paquistão (sede da CIA) e as prisões clandestinas espalhadas no mundo pela agência para nos fazer assistir às diversas etapas do processo que terá conduzido à morte de Bin Laden."


"Ora, a primeira coisa notável, neste quadro, é a ausência de personagens propriamente ditas: tanto as secundárias como a principal parecem não existir para lá das ações que executam (e, entre elas, nenhuma relação emocional se estabelece). Trata-se — estamos em crer — não de uma ‘falha’ mas de uma deliberada decisão de realização. Entenda-se: o que Bigelow se propõe dar a ver é, precisamente, o exorcismo político e coletivo de um fantasma (o de Bin Laden) que paira sobre a vida das personagens. Prova disso será, talvez, a sequência do jantar entre Maya e uma das suas colegas. Único esboço de intimidade que o filme admite, a sequência é entravada, primeiro, pela incapacidade que a protagonista revela de pôr em suspenso o seu trabalho (vemo-la a remexer incessantemente no seu telemóvel), e é abruptamente interrompida, depois, pela explosão de uma bomba nas imediações do hotel onde o jantar decorre — como se a ‘normalidade’ não pudesse existir, aqui, sem a imediata afirmação da sua impossibilidade."


"De facto, através do aparato policial dos episódios que encena (interrogatórios, reuniões, perseguições...), “00:30” constitui-se — a seu modo — como um filme de terror psicológico, dedicando-se à crónica dos gestos realizados por uma personagem coletiva que se deixa magnetizar por uma ausência, por um fora de campo irrepresentável que designa a soma de todos os medos (e note-se que, quando o corpo de Bin Laden por fim nos chega, já cadáver, nunca somos autorizados pelos ângulos e movimentos da câmara a vê-lo com nitidez)."


"Assim se explica, também, o aparente ‘apagamento’ do olhar de Bigelow neste filme. Com efeito, e exceção feita à prodigiosa sequência final (que, durante meia hora, nos submerge numa escuridão quase absoluta para nos condenar a descobrir caminho por território desconhecido), a presença da cineasta atrás das câmaras faz-se discreta para abrir espaço ao relato de um frenesim processual que, lentamente, atraiçoa o estado de anestesia emocional e moral das personagens. Não nos espantemos, então, que “00:30” não nos ponha em contacto com as emoções à flor da pele que serviam para construir a tensão de trabalhos como “Aço Azul” (1989) ou “Ruptura Explosiva” (1991)..."


"Uma última e necessária palavra para a polémica (política, mediática) que o filme tem vindo a suscitar um pouco por todo o lado — polémica que, nas últimas semanas, se viu aliás exponenciada pela publicação no “The Guardian” de uma carta onde, comparando Bigelow com Riefens-thal, Naomi Wolf atribui à cineasta a vontade de legitimar as práticas de tortura que descreve. É um tipo de acusação que, no cinema, tem barbas que remontam ao “Nascimento de Uma Nação” (1915), de Griffith, e que, no fundo, só quer uma coisa: a higienização política e ideológica dos discursos. De resto, a linguagem jurídica usada por Wolf (“o seu filme alega”...) denuncia a presença, no seu argumento, de uma ideia que — embora imbecil — não deixa de ser frequente: a de que uma obra de arte tem de recriminar ou subscrever o que dá a ver, sem ambiguidades (é a Cerelac estética dos mentecaptos)."


"Supomos, pois, que Wolf desejasse encontrar no filme uma condenação expressa (em nota de rodapé, talvez) das atrocidades cometidas pelos agentes da CIA. Não terá essa sorte: um cineasta não é um pedagogo e não lhe compete dizer ao espectador o que deve pensar sobre a, b ou c. Competir-lhe-á, talvez, ser sério: como Bigelow é quando retrata a tortura com a secura que se exige e quando deixa ao espectador o encargo de decidir por si o que significam as lágrimas que no último plano se derramam." Vasco Baptista Marques, Expresso de 19/01/2013