16.8.07

Ingmar Bergman (1918-2007)

Havia pouco mais de duas semanas que completara 89 anos, a 14 de Julho, quando a Morte fez o seu xeque-mate a Ingmar Bergman no passado dia 30 de Julho. Presente, de forma mais ou menos subterrânea, e como «personagem», numa das suas obras-primas, O Sétimo Selo, fazia parte da sua herança cultural e religiosa, marcas de uma severa educação num meio extremamente rígido, sob o olhar de um Deus severo e tirânico, filho que era de um pastor luterano, e das influências literárias, e mesmo cinematográficas. A grande influência que Bergman sofreu neste último campo foi a do pioneiro sueco Victor Sjöström. O Sétimo Selo é um filme dominado pelo olhar de Sjöström em filmes como Vem Dömer e Körkarlen/O Carro Fantasma. De certo modo, pode dizer-se que essa influência se faz sentir em quase todos os filmes de Bergman até O Olho do Diabo, de 1960, sendo este ano, singularmente, o da morte de Sjöström. Só a partir de então, e do filme Sasom i en Spegel/Em Busca da Verdade, é que Bergman parece ter iniciado um caminho pessoal e inconfundível. A Sjöström voltaria Bergman directamente por duas vezes. A primeira fazendo dele o intérprete principal de Morangos Silvestres (1957), um autêntico filme «testamento» (seria a última aparição de Sjöström no cinema), balanço e reflexões de uma vida onde se projecta já a do próprio Bergman. A segunda, 43 anos depois, em 2000, quando no balanço da própria vida, Bergman reflectia e evocava o passado, no magnífico trabalho para a televisão que foi Bildmakarna/Os Fazedores de Imagens (mostrado há meia dúzia de anos na Cinemateca Portuguesa), um argumento original do realizador, que aborda um encontro imaginário de Sjöström com a escritora Selma Lagerlöf, durante as filmagens de O Carro Fantasma. Aliás, a própria vida de Bergman foi a matéria-prima de muitos dos seus outros filmes. Cenas da Vida Conjugal, que foi primeiro série de televisão em seis episódios, sendo depois remontada para ser explorada no cinema, será, talvez, um dos melhores exemplos, que encontra um genial corolário, 30 anos depois, em 2003, em Saraband, onde o mesmo par que se confrontava, destruía e amava no primeiro filme, voltava a encontrar-se. A mulher era Liv Ullmann, o homem Erland Josephson (alter ego de Ingmar Bergman). Dentro da mesma linha se encontra uma das obras de Bergman mais conhecidas e amadas dos espectadores: Fanny e Alexandre, esplendorosa, pungente, trágica e festiva evocação da infância do realizador, onde, para além dos dramas que a marcaram, nos fala da descoberta do teatro de marionetas, base de toda a sua paixão futura pelo teatro e o cinema. Foi em 1941 que Ingmar Bergman se estreou no cinema como argumentista. Dentro desta categoria assina, entre outros, o argumento de um filme clássico de Alf Sjöberg: Hets/Tortura, de 1944. O trabalho desenvolvido leva à passagem à realização em 1946, com Kris. A sua obra pode, de certo modo, dividir-se em duas partes. A primeira, que vai de Kris a O Olho do Diabo. A segunda, como dissemos atrás, tem início com Em Busca da Verdade, o filme que em 1961 lhe deu o segundo Óscar da Academia de Hollywood para o Melhor Filme Estrangeiro, e que marca o início dos trabalhos mais pessoais, e onde a ligação entre o cinema, teatro e ópera é mais flagrante. Durante nove anos, de 1946 a 1955, Bergman é pouco conhecido fora do seu país, mas é neste período que dirige um dos filmes mais apreciados, Mónica e o Desejo, feito de propósito e à glória de uma das mulheres que amou, Harriet Andersson (que no mês passado se deslocou a Portugal para assistir a um Festival de Teatro, tendo estado presente na Cinemateca Portuguesa). Para além deste, dirigiu obras que, descobertas mais tarde, se encontram entre as melhores, de Noites de Circo a Uma Lição de Amor. De súbito, irrompe o fenómeno Bergman, com a apresentação, no Festival de Cannes, de Sorrisos de Uma Noite de Verão, vencedor de um prémio de «consolação», o de Humor Poético, tendo perdido a Palma de Ouro a que se candidatava. As suas obras tornam-se, a partir de então, presença obrigatória em quase todos os certames, em particular com O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. Com A Fonte da Virgem conquista o primeiro dos seus três Óscares (os outros foram Em Busca da Verdade e Fanny e Alexandre), proeza só superada por Federico Fellini, vencedor de quatro estatuetas. Com Em Busca da Verdade começa a segunda fase da sua obra, mais complexa e sombria, marcada por um profundo pessimismo e por um olhar sobre a alma humana, que fez dele um dos melhores retratistas das crises psicológicas, em particular das personagens femininas. Neste campo, Bergman terá sido o melhor analista da mulher, ao lado do japonês Kenji Mizoguchi, do italiano Michelangelo Antonioni e do americano George Cukor. Mais complexa, a sua obra torna-se também mais polémica, principalmente em filmes como Tystnaden/O Silêncio e Persona/A Máscara (talvez os retratos femininos mais poderosos da sua obra). O último é também uma verdadeira revolução em termos de linguagem cinematográfica, pela forma como utiliza o grande plano (que o seu admirador confesso, o americano Woody Allen, imitaria em Intimidade) e pelas rupturas estilísticas que impõe. Os problemas que no fim da década de 60 teve com o fisco na Suécia levaram-no a sair do país, regressando em 1972 para a última fase da sua obra, iniciada com outra obra-prima, Lágrimas e Suspiros, e concluída com esse filme «balanço» que foi Fanny e Alexandre, em 1982, anunciando então a sua retirada do cinema, para se dedicar ao trabalho no teatro e na televisão, e como argumentista. Neste último caso, assina alguns trabalhos autobiográficos que outros dirigirão, como Bille August (As Melhores Intenções), e o seu filho Daniel Bergman (Söndagsbarn/Filhos de Domingo). Em câmara digital irá realizar o último trabalho que chegará ao grande ecrã, Saraband. Uma obra que, no total, o levou, como disse o poeta, a libertar-se da «lei da Morte» que o acompanhou durante toda a vida.
M. Cintra Ferreira, Expresso de 04/08/2007