16.8.07

Michelangelo Antonioni (1912-2007)

Ainda não nos tínhamos refeito da notícia da morte de Ingmar Bergman, eis que nos cai em cima e de Michaelangelo Antonioni. Como se a Parca não quisesse levar o sueco sozinho, e resolvesse dar-lhe por companhia outra alma que soube, como poucas, espreitar pela janela dos olhos das mulheres. Vão ter muito que conversar pela eternidade fora. Sobre a morte de Bergman escrevi que ele fora, ao lado de Mizoguchi, George Cukor e Antonioni, o melhor retratista da mulher no cinema. No caso do italiano pode acrescentar-se que todo o universo do seu cinema gira à volta da mulher e, mais do que os outros membros do grupo, do erotismo. A prová-lo aí estão os filmes em que o seu olhar se desvia momentaneamente para a personagem masculina, Zabriskie Point/Deserto de Almas e Professione: Reporter/Profissão: Repórter, que, apesar de alguns momentos magistrais (o superlativo plano-sequência final do segundo), serão as suas obras mais desequilibradas. Quanto a Blow Up/História de Um Fotógrafo, a personagem masculina (David Hemmings) apenas age em função das figuras femininas que persegue. Michelangelo Antonioni, falecido aos 94 anos (ia fazer 95 no próximo mês de Setembro), nasceu no meio de uma família da classe média (ambiente que irá explorar em quase todos os filmes que fez), em Ferrara, Itália. Estudou em Bolonha, ao mesmo tempo que se dedicava à pintura e à crítica. Será este trabalho que o levará, quando em 1939 se desloca para Roma, a integrar a redacção da revista «Cinema» (fundada pelo filho de Mussolini), onde se dedica à crítica de filmes e tem como companheiros alguns nomes que se tornarão conhecidos como realizadores no pós-guerra, ao mesmo tempo em que se inscreve no Centro Sperimentale di Cinematografia, para estudar a direcção de filmes. Antes de se dedicar à realização, Antonioni colaborou também nos argumentos de filmes de outros directores, com destaque para Un Pilota Ritorna, de Roberto Rossellini (1942), e Caccia Tragica, de Giuseppe de Santis (1947). A estreia de Antonioni como realizador teve lugar ainda durante a guerra, com um pequeno documentário, Gente del Po, cujo estilo poético revelava já o olhar característico que iria marcar as suas obras mais famosas. Foi só já bastante depois da guerra, em 1948, que Antonioni pode voltar a dirigir um filme. Até 1950 a sua obra está circunscrita ao documentário, sob a influência do neo-realismo então dominante na produção italiana, sendo o mais sugestivo, Nettezza Urbana, sobre os serviços de limpeza das ruas de Roma. Mas desde a sua estreia na longa-metragem, que tem lugar em 1950, se mostra que Antonioni tem um olhar diferente e outras preocupações do que explorar o miserabilismo típico dos filmes daquele género. Cronaca di un Amore/Escândalo de Amor, é, desde logo, uma obra-prima, um verdadeiro manifesto por um cinema de ruptura, mesmo apoiando-se em modelos clássicos. O deste é o melodrama. Um melodrama soberbo onde brilha a primeira das belíssimas mulheres que povoam a sua obra, Lucia Bosé, compondo a figura de uma mulher atormentada pelo passado, que surge na figura de um antigo amante na sua (agora) vida de uma rica e enfastiada burguesa, que com ele planeia a morte do marido. La Signora senza Camelie/A Dama Sem Camélias (um título que remete para a conhecida peça de Alexandre Dumas filho, A Dama das Camélias, é a segunda longa-metragem de Antonioni, de novo com Lucia Bosé, no papel de uma jovem que procura fazer carreira no mundo do cinema italiano. Não tão importante como o primeiro, aqui se manifesta, de forma mais completa, o testemunho crítico de um meio e uma forma de vida alienada que nos anos 60 será a marca do autor nas suas obras maiores. Após um filme em episódios (I Vinti), e um episódio para outro («Tentativa de Suicídio» para Retalhos da Vida, que deveria ser o filme-manifesto do neo-realismo de Cesare Zavattini), Antonioni assina aquela que talvez seja a obra mais importante desta fase, Le Amiche, retrato do meio da média-burguesia, marcado por outro notável retrato feminino, feito sobre o corpo de Eleonora Rossi Drago. É aqui que se encontra em embrião o tema da alienação que o realizador desenvolve na sua famosa tetralogia dos anos 60, a que se lança depois do singular retrato «proletário» que constitui O Grito. Foi em 1960 que A Aventura se estreou no Festival de Cannes, onde ganharia o Prémio Especial do Júri, e o cinema não voltaria a ser o mesmo. Era uma filme onde praticamente nada acontecia e, mais radicalmente ainda, onde se «afastava da história» que lhe servia de pretexto (a desaparição de uma jovem numa ilha), para se concentrar nos problemas emocionais e afectivos de dois personagens. Foi também o encontro de Antonioni com Monica Vitti, que iria tornar-se a sua musa, nos anos seguintes, personagem de filmes como A Noite, O Eclipse (Prémio do Júri em Cannes) e o Deserto Vermelho, onde traz para a narrativa outro dado importante, a cor, tratada de uma forma que parece reflectir a crise das personagens. A fama internacional de Antonioni estava feita. Só faltava a consagração, que virá com o filme Blow Up, vencedor da Palma de Ouro de Cannes e candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (que não ganharia!). Começa também a fase mais discutida (discutível?) da sua obra, onde se inclui o longo documentário que fez sobre a China (para onde, um país então de fronteiras fechadas, Antonioni teve uma autorização especial de Mao Zedong para entrar). Em 1981, dirige outro marco importante da história do cinema, O Mistério de Oberwald, então uma revolução com o uso que o realizador faz da câmara de video para filmar, a que se segue, em 1982, Identificação de Uma Mulher. Em 1985, Antonioni é vítima de um acidente vascular cerebral que o deixa praticamente paralisado e sem fala. Mesmo assim, dez anos depois, ainda fará, como apoio de Wim Wenders, o filme em episódios Para Além das Nuvens. Um outro episódio, para o filme colectivo Eros, feito em 2004, é o seu derradeiro trabalho. O título do filme não podia ser mais indicado: Eros, para quem, como poucos, soube mostrar o erotismo no ecrã.
Manuel Cintra Ferreira, Expresso de 04/07/2007