13.5.08

Cartas a Uma Ditadura
Título original: Cartas a Uma Ditadura
De: Inês de Medeiros
Género: Doc
Classificação: M/12
FRA/POR, 2006, Cores e P/B, 60 min.

"As grandes senhoras, das grandes famílias, algumas nos palacetes que ainda habitam, renovam o seu fervor por Salazar e pela trilogia «Deus, Pátria, Família» que condensava o ideário do regime. As outras, sem quadros nas paredes, coadas a uma luz muito diferente e mostrando na pele outros suores, já não falam do ditador com a mesma certeza. Este filme mostra que há uma marca de classe nos últimos abencerragens do Estado Novo. Mas mostra também, em referência aos anos 50, que o suporte político do presidente do Conselho se espalhava por muitos outros estratos sociais, que o ditador era amado — por vezes até à histeria — como as imagens demonstram. Nada de novo. Todos os ditadores da época, de Hitler a Estaline, desencadearam respostas emocionais desse tipo."

"Desde o «inaugural» Deus, Pátria, Autoridade, em 1975, que a viagem à memória do salazarismo que o cinema português tem seguido se processa, em geral, segundo uma estratégia de denúncia. Sobre as imagens do tempo, um texto acusa invariavelmente a inverdade da retórica das imagens (tiradas de actualidades ou documentários da época, ou seja, «infectadas» pelo mal político que as controlara), expondo uma visão «correcta». Ou então, contrapõem-se imagens de época a outras do presente, testemunhais, confrontando o tempo do aperreamento com o tempo da liberdade. Cartas a Uma Ditadura segue esta segunda via, mas de um modo muito particular. O filme, centrado num conjunto de cartas de apoio a Salazar e a um Movimento Nacional das Mulheres Portuguesas criado em 1958, na sequência do terramoto com que Delgado abalou o regime, foi interrogar algumas das signatárias que conseguiu localizar, entre figuras da alta burguesia e mulheres do povo. Só que a face testemunhal não está lá para se constituir contraditório ao peso dos filmes de época. Está lá para atestar que o salazarismo, em termos de mentalidade, dura até aos nossos dias."

"Inês de Medeiros tinha seis anos em Abril de 1974, cresceu e tornou-se adulta em clima democrático, é alguém para quem o salazarismo e a retórica do Estado Novo são velharias bafientas de um passado negro que ela não viveu — felizmente! Uma estratégia de denúncia pressupõe uma energia de combate e, porventura, a realizadora acha que essa guerra acabou há muito tempo. Prefere, por isso, compreender o que se passou, dando de barato, na desafectada narrativa com que enquadra a época em que as cartas surgiram, que o regime de Salazar é algo de verberado e enterrado pela dinâmica histórica. Daí que a constatação da permanência de valores e mentalidades salazaristas que o filme limpidamente mostra não faça soar uma sirene de alarme, apenas uma funda mágoa. Ou seja: Cartas a Uma Ditadura não considera que essa permanência possa constituir embrião, ovo da serpente, de que outro autoritarismo retrógrado se erga. E não lhe passa pela cabeça a explicitação da denúncia, tão óbvia lhe parece a realidade do Estado Novo. De certa maneira, Cartas a Uma Ditadura é a certidão de óbito do contraponto fascismo/antifascismo por perda de operacionalidade no presente."



"Estimulante e triste filme este que nos lembra o sarro que ainda temos agarrado à pele e que nem trinta anos de esfregadelas conseguiram remover. Havemos de cheirar sempre àquilo? Inês de Medeiros já não cheira, este filme é descomplexadamente livre."
Jorge Leitão Ramos, Expresso de 10/05/2008