10.5.08

Shine a Light
Título original: Shine a Light
De: Martin Scorsese
Classificação: M/12
EUA/GB, 2008, Cores, 122 min.

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"Foi um longo caminho o que levou Martin Scorsese, pelo campo musical, a Shine a Light. Caminhada iniciada em 1970 com a sua colaboração na montagem do clássico documentário Woodstock, e dois anos depois na de Elvis on Tour. A paixão de Scorsese pela música popular está bem expressa numa série de trabalhos bem conhecidos dos cinéfilos: o documentário sobre a despedida de The Band em A Última Valsa, sobre Bob Dylan em No Direction Home, e na produção da magnífica série The Blues (e tem previsto, já para 2010, um novo trabalho, desta vez sobre George Harrison). Mas os Rolling Stones ocupam um lugar especial na sua vida e obra. Não foi preciso esperar por Shine a Light para se perceber o papel que a famosa banda teve na vida e formação de Scorsese. De Os Cavaleiros do Asfalto a The Departed: Entre Inimigos, passando por Tudo Bons Rapazes e Casino, a música dos Stones está sempre presente. De certo modo, Shine a Light não é mais do que uma celebração dessa longa paixão."

"Shine a Light é um dos mais perfeitos «filmes-concerto» de que há memória. E de um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, pode dizer-se que os Rolling Stones são uma banda feliz. Como conjunto, e sem referir outro tipo de aparições, eles estão no centro de três filmes notáveis: One + One: Sympathy for the Devil, de Jean-Luc Godard (1968), talvez o mais sugestivo filme da contracultura dos anos 60, Gimme Shelter, de Albert e David Maysles (o primeiro é colaborador de Scorsese em Shine a Light), que talvez seja o documentário «definitivo» sobre os Stones, e Shine a Light, o «filme-concerto» perfeito."

"Apesar das semelhanças evidentes entre A Última Valsa e Shine a Light, há, entre eles, uma diferença significativa. O primeiro pode considerar-se um documentário, pois Scorsese vai filmar o que será a despedida de The Band. Shine a Light, por seu lado, é um filme preparado sobre um concerto dado exactamente para ser filmado. Num caso destes, o realizador pode preparar a cena tal como se se tratasse de um outro filme seu, de ficção. Pode? Poderia, se não se tratasse dos Rolling Stones, que mantêm a sua irreverência e sentido de provocação, mesmo que se trate agora de uma atitude mais ou menos «blasé», já uma marca do grupo, tacitamente aceite pelo «establishment»."

"De facto, deste ponto de vista, Shine a Light também poderia ser visto como a manifestação dos Stones como membros do mesmo «establishment» de que foram um dos grupos mais críticos nas décadas de 60 e 70. E talvez haja, da parte de Scorsese uma certa ironia, gozo (se não mesmo, «maldadezinha») em fazê-los serem apresentados nada menos do que por Bill Clinton, cujas palavras abrem este concerto dado no Beacon Theater de New York, em 2006, num espectáculo de beneficência para uma ONG apoiada pelo ex-Presidente dos EUA, e exactamente no dia do seu aniversário (quase uma festa de família, pois conta com a presença do clã Clinton, e muitos convidados que lhe são próximos)."

"Mick Jagger, em particular, parece ter-se divertido espicaçando Scorsese, que vemos em cenas iniciais pedindo insistentemente a lista das canções que irão entoar a fim de estabelecer o seu plano de trabalho. Face à inevitável impossibilidade de o conseguir, dados os improvisos da banda, Scorsese encolhe os ombros resignado e desabafa: «It’s all rock’n’roll!»"

"O espectáculo filmado faz parte da digressão dos Stones «Bigger Band Tour» de 2006, e Jagger teria sugerido ao realizador que filmasse o concerto que seria dado em Copacabana, no Brasil, perante dezenas de milhares de pessoas. Scorsese recusou. O seu projecto era outro. O pequeno teatro Beacon era perfeito para o controlo total das câmaras e dos movimentos. O filme, aliás, é, para além do recital de música, uma verdadeira lição de cinema por parte do realizador. Scorsese requereu à Associação Americana de Directores de Fotografia autorização (que lhe foi extraordinariamente concedida) para usar um vasto número de experientes e oscarizados profissionais como operadores de câmara que, sob a orientação geral de Robert Richardson, fazem da captação de imagens e dos movimentos das câmaras outros tantos «personagens» do filme e parceiros fundamentais das músicas dos Stones. O saber e a habilidade de Scorsese mostram-se também nas cenas de abertura e de encerramento, após o concerto, e em que ele participa. No final, Scorsese acompanha a câmara até à saída do teatro e dirige-se-lhe de forma eufórica; «Sobe! Sobe!», e a câmara vai subindo, direita ao céu, abarcando a cidade iluminada, num plano que faz «raccord» com o final do seu Gangues de Nova Iorque."



"E não falei ainda da música e dos convidados. Mas a música é dos Stones e está tudo dito (da abertura clássica com «Jumpin’ Jack Flash», ao incontornável «Sympathy for the Devil») e os convidados são Jack White III, Christina Aguilera (com quem Jagger faz dueto em «Live with Me») e Buddy Guy (com Jagger, no que é o momento mais estimulante do concerto)."
Manuel Cintra Ferreira, Expresso de 10/05/2008