Título original: The Bad Lieutenant: Port of Call - New Orleans
De: Werner Herzog
Com: Nicolas Cage, Eva Mendes, Val Kilmer
Género: Crime, Drama
Classificação: M/16
EUA, 2009, Cores, 122 min.
"COMECEMOS pelo começo, ou seja, pela natureza da relação existente (ou não existente...) entre o filme de Werner Herzog e o filme com o mesmo nome (“Polícia sem Lei”) e com o mesmo produtor (Edward R. Pressman) que Abel Ferrara realizou em 1992. Trata-se de um remake do original, que dissecava a descida aos infernos de um polícia junkie sem redenção possível. No último Festival de Veneza, palco da estreia mundial do filme, Herzog (polémico, como sempre) foi taxativo a esse respeito: o “Polícia sem Lei” de Ferrara? — “Não vi”; Ferrara? — “Não conheço.” Mas em que é que ficamos, afinal?"
"Brincando com o título de uma velha canção dos Roxy Music, poder-se-ia talvez dizer que, entre remake e remodel, Herzog escolheu claramente a segunda opção. E, neste caso, dizer ‘remodelação’ é, ainda, dizer pouco. Entenda-se: o que aqui temos é um filme que se diverte a inverter, perverter e subverter (de forma deliberada e subtilmente paródica) a lógica narrativa e o sentido último do trabalho de Ferrara."
"Deixando desde já de lado a distância geográfica e cenográfica que separa os exteriores esquálidos da Nova Iorque de Ferrara dos interiores reluzentes da Nova Orleães de Herzog (versão pós-Katrina), diga-se que os sintomas da referida ‘inversão’ estão espalhados um pouco por toda a parte neste “Polícia sem Lei”. O polícia junkie e sem nome de Ferrara (Harvey Keitel) era um zombie trágico e histriónico, um morto-vivo emparedado no seu presente que um argumento reduzido à sua ossatura indispensável ia conduzindo por entre espectros (os colegas, a família, a dealer, o bookie, etc.). Pois bem, no filme de Herzog, ele será uma pessoa nomeável: Terence McDonagh (Nicolas Cage). Divertida e verborreica, dotada de um passado e — adivinha-se — de um futuro, ela é prontamente amparada por uma miríade de relações efectivas (o colega-parceiro, a família ‘concreta’, a amante dealer, o bookie gingão, etc.) que se vão cruzando, descruzando e recruzando demoradamente numa espécie de homenagem psicotrópica ao film noir."
"Dir-se-á que todas estas diferenças não chegam para constituir uma ‘inversão’ e que o filme de Herzog sobrevive bem sem uma referência ao filme de Ferrara. E assim seria, de facto, se elas não estivessem fundamentando uma radical subversão do ponto de vista: porque, se o polícia de Ferrara é enquadrado, numa óptica ‘transcendente’, como o habitante de um mundo privado da lei (leia-se, da lei moral cristã), o polícia de Herzog é enquadrado, numa óptica ‘imanente’, como o habitante de um mundo isento de lei (isto é, regido pelo acaso). Talvez seja por isso que, apesar do seu tom aparentemente mais light, saímos da sala com a nítida sensação de que este Polícia é — de longe — o mais selvagem dos dois." Vasco Baptista Marques, Expresso de 22/05/2010