13.3.11

Filme Socialismo
Título original: Film Socialisme
De: Jean-Luc Godard
Com: Catherine Tanvier, Christian Sinniger, Jean-Marc Stehlé, Patti Smith, Robert Maloubier
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: FRA, 2010, Cores, 101 min.

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"Certezas, só uma: “Filme Socialismo” não é mais um igual a tantos outros. A ‘operação Godard’, cineasta cujo trabalho Portugal tem a honra e o luxo de acompanhar há muito (a Atalanta Filmes mostrou dele quase tudo nestes últimos 20 anos), não fica por aqui. A 10 de março, estreia nas salas o documentário “Godard/Truffaut — Os 2 da (Nova) Vaga”, realizado por Emmanuel Laurent, com argumento de Antoine de Baecque. A Cinemateca Portuguesa associou-se também à ‘operação’ com um ciclo Godard, já em curso, “variado no tempo e nas épocas”, que acompanhará a sua programação das primeiras semanas de março. Além disso, serão ainda editados mais dois DVD de Godard, “Viver a Sua Vida”, de 1962 (o célebre filme em que Anna Karina chora com a Joana d’Arc de Dreyer), e “J.L.G. por J.L.G.”, de 1994."

"Voltamos ao ‘socialismo’. Filme em três episódios: “Des choses comme ça”, “Quo Vadis Europa?” e “Nos humanités”. Estamos num cruzeiro pelo Mediterrâneo (como em “Um Filme Falado”, de Manoel de Oliveira). No Mediterrâneo, há muito a percorrer: Barcelona, Nápoles, o Egito, a Grécia. Há também a Palestina, mas nessa o barco não atraca. E o Bósforo, que nos abre o Mar Negro e Odessa, a Odessa das escadas de Eisenstein e de “O Couraçado Potemkine”. Também há personagens, vagas: são porta-vozes de ideias e de memórias que podem ser ou não deste tempo. E o cruzeiro, que na sua população turística e envelhecida transporta estranhos passageiros (de um ex-nazi chamado Goldberg a uma trovadora perdida em que se reconhece Patti Smith), esse cruzeiro que se diria à deriva, Mediterrâneo fora, filmado de mil maneiras, é um microcosmos do desastre capitalista. Até já lhe chamaram a anti-Arca de Noé, pois nada ali foi escolhido a dedo. Também há um relógio sem ponteiros e uma câmara fotográfica, objetos que atravessarão as três partes do filme. Extratos de documentários sobre animais e animais extraídos de outras ficções. E há crianças, e a sua esperança, pelo meio. Na sala de cinema, somos levados a reagir a esta acumulação de coisas (“comme ça”), signos e sinais, regimes de imagens e de sons que contemplam a história do cinema, mas também a Internet e todo um anonimato visual e sonoro, captados por telemóveis. Não há cenas, nem sequências, apenas planos, uns atrás de outros, em permanente tensão."

"Nada disto parece claro, nem é passível de explicação. “Filme Socialismo” resiste a qualquer tentativa de sinopse. O filme é tão antirretórico que só poderia ser descrito plano a plano — e mesmo com esta técnica seria filme impossível de contar: as imagens são francesas, árabes, russas, egípcias, gregas, espanholas... Às imagens são acrescentados ‘vírus numéricos’ que levarão quem vê o filme a pensar que a projeção está com problemas. Às imagens são acrescentadas tanto vozes aforísticas e pensamentos graves como meras situações do quotidiano e reportagens da TV. E ainda subtítulos, em “navajo english” (um inglês ‘de índio’ a reduzir a informação ao osso), como os que fez Godard para a projeção de Cannes e que não serão vistos na projeção de Lisboa. Há muitos obstáculos, portanto. Mas não se consegue fechar os olhos. Os ouvidos parecem ouvir mil vezes (Godard trabalha o som estéreo como ninguém). E há ainda uma derradeira imagem em forma de intertítulo sobre fundo negro — “no comment” —, sinal premonitório de um inventário impossível de concluir."

"Em “Filme Socialismo”, chora-se pela Europa e “recebem-se paisagens de outrora”. É uma abordagem ao ‘estado das coisas’. Questiona-se o estatuto da imagem no século XXI e a sua relação com o poder, com a História, como se Godard, num processo que em tudo parece caótico, quisesse no fundo reorganizar a Babel de todos os regimes do visível e do audível. O que é “Filme Socialismo”, em meia dúzia de palavras? Um filme marítimo a bordo de um cruzeiro que está cheio de canalhas (“Des choses comme ça”); uma valsa em torno de uma família às avessas (a da garagem Martin) e de um livro de Balzac, “Ilusões Perdidas” (“Quo Vadis Europa?”); uma reunião dos traumas e do fracasso da Europa (“Nos humanités”) atravessados por trechos musicais que recordam tragédias e por citações que Godard respiga, aqui e ali, nos panteões do ensaio e da literatura (“não quero morrer sem voltar a ver a Europa feliz”). E desta multidão de objetos visuais e sonoros que circulam, deste filme-manifesto que nos faz sentir responsáveis pela história do mundo, o que resta do seu título, socialismo?"

"Há uma story ténue, que converge para Barcelona, para a Guerra Civil Espanhola e para o famoso caso do ‘Ouro de Moscovo’. Na alvorada da guerra, em 1936, o Governo republicano translada, de barco, um tesouro colossal da banca espanhola para a URSS de Estaline, fiel depositária. É preciso pagar a guerra. Do tesouro, jamais se soube o paradeiro. No filme, o seu destino é naturalmente inventado e reescrito por Godard, que assim cria uma lenda a partir de diversos factos históricos contraditórios. À sua chegada a Odessa, o tesouro teria perdido um terço da sua carga, roubado pelos nazis. Outro terço se perderia ainda, desviado desta vez por Willi Münzenberg, voz do Komintern no Ocidente, na viagem entre Odessa e Moscovo. O terço restante desapareceria sem deixar rasto."

"Temos, portanto, o relato de um tesouro roubado e eclipsado por Godard em três atos, tantos como os do filme. O que esse relato significa é a circulação subterrânea do dinheiro na história da Humanidade e a cadência do vil metal como base fundadora do século XX — o maior entrave à utopia do socialismo. O terreno do filme, de resto, é socialista: a Grécia antiga; a revolução de 1789; Odessa em 1905; a queda da Barcelona republicana em janeiro de 1939; a resistência francesa na II Guerra Mundial; a Nápoles do “Paisà”, de Rossellini e da libertação. E ainda a Palestina, dos anos 40 aos dias de hoje — à qual o acesso deste cruzeiro é negado. Essa Palestina que é o cinema — eternamente à procura da independência."



"Há ainda uma outra forma de socialismo, que vem da montagem. É que “Filme Socialismo” parece alinhar e conter todas as imagens do mundo, as produzidas, as naturais e as sonhadas, as ‘puras’ e as ‘impuras’, como se, a partir daqui, tivesse nascido um equilíbrio entre elas (podia dizer-se, em jeito de provocação, uma liberdade, uma igualdade e uma fraternidade), venham essas imagens de uma câmara HD ou de um telemóvel, de uma obra-prima de cinema, de um direto da TV ou de um ‘diálogo de gatos’ do YouTube. Como se em cada imagem, existisse agora a hipótese de um filme a fazer. Neste ponto, “Filme Socialismo” é um corte profundo (o primeiro) com “Histórias(s) do Cinema”, filme matricial da última fase do trabalho de Godard. O cinema vai certamente partir daqui, deste fabuloso e profético nomadismo, para continuar o seu caminho. A sua revolução. Sem copyright, num socialismo da imagem." Francisco Ferreira, Expresso de 05/03/2011