Título original: E o Tempo Passa
De: Alberto Seixas Santos
Com: Ricardo Aibéo, Sofia Aparício, Nuno Casanovas
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2011, Cores, min.
De: Alberto Seixas Santos
Com: Ricardo Aibéo, Sofia Aparício, Nuno Casanovas
Género: Drama
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2011, Cores, min.
"Não há cineasta menos definível em Portugal do que Alberto Seixas Santos, desde que abalou as certezas do antifascismo triunfante de 1975 com uma fita nunca por demais louvada — “Brandos Costumes”. Com uma carreira espaçadíssima (a sua última longa-metragem, “Mal”, data de 1999), estreia agora, após gestação morosa, “E o Tempo Passa”. Como protagonista, Sofia Aparício, a quem o realizador se tem dedicado, transformando a modelo em atriz, desde logo dirigindo-a em teatro (“O Caracal”, de Judith Herzberg, em 2003), naquela que é a mais memorável das suas prestações sobre um palco. Ela foi a escolha matricial de Seixas Santos para este filme, ambos correndo o risco de a personagem poder ser vista como uma variação sobre a própria Sofia Aparício na vida real. Mas como a coragem é fundamental para fazer cinema que valha a pena, ele escreveu e ela interpretou uma personagem oca, um bocadinho fútil, com medo da solidão, que talvez tenha futuro como atriz e a fazer Brecht, ou talvez apenas lhe esteja destinado envelhecer solitária, sem amores veros e com dores nos músculos que nem sabia que existiam."
"Como segunda figura feminina, o filme traz-nos Isabel Ruth, estabelecendo um contraste — geracional, de imagem de marca — mas, estranhamente, permitindo um processo de identificação entre as suas personagens, que quase dão corpo a uma deusa bifronte. Lá mais para trás, praticamente um coro, um grupo de jovens atores e atrizes. E, como trama, uma modelo-vedeta (Teresa/Sofia Aparício) que quer ser atriz e participa numa telenovela juvenil, cheia de inseguranças. Só que “E o Tempo Passa” é mais compensador que isso, revelando-se desde logo como um jogo delicioso onde as ficções existem em camadas justapostas e diferenciadas, mas onde podemos muito bem perdermo-nos (o que é ficção?, o que é realidade?) antes de percebermos que é uma dúvida vã. Se estamos no cinema, tudo é ficção, tudo são personagens, pode é haver personagens que façam de personagens — e até pode haver um inocente que já não distingue nada, um bruto de vida simples, bom homem, que trabalha com carne e fezes e vísceras num matadouro e depois vai a correr ver rodar telenovelas e até se apaixona por uma das personagens..."
"Na primeira versão do argumento, a telenovela que aparecia no filme era completamente diferente”, revelou-nos o realizador. Era uma história de um grande construtor civil, casado, com uma amante, e era um pastiche da telenovela portuguesa: havia uma filha ilegítima, heranças, envenenamentos, o padrão... Mas depois percebi que não me apetecia fazer uma telenovela com uma história de telenovela e atores de telenovela. Pensei que podia ser divertido fazer uma variante do ‘Fame’. E apareceram os ‘miúdos’, o que me agradou bastante.”
"Mas a telenovela do filme tem cenas que nunca poderiam aparecer no pequeno ecrã: a carta da professora nunca poderia ser lida na televisão às sete da tarde, a cena dos seios nus nunca poderia ser vista, o tema do incesto também não... Seixas Santos atesta essa transgressão como “uma espécie de provocação, um gesto de partir a loiça”. Acrescenta, todavia, irónico: “Mas era tentador...” Tentador pensar o que poderiam ser as telenovelas se alguém fosse autorizado a infringir as formatações. Algo que nunca saberemos o que seria, porque a indústria da telenovela é como a da fast food: não se quer que o consumidor descubra, só se quer que ele reconheça. E por isso nunca veremos uma personagem como a daquela professora que Rita Durão interpreta com tão grande comoção, sem homem, “uma virgem a passar de época”, a escrever fantasias eróticas extremas e brutais."
"Bons são esses ‘miúdos’ de que fala Seixas Santos, generosamente entregando-se a um filme que os excede e onde não são a parte que mais interessa, funcionando um pouco como desapiedado contraponto ao drama da(s) protagonista(s). “Como são novinhos, ainda acham que o cinema é mais importante que a televisão”, comenta, irónico, o realizador, que, à beira de cumprir 75 anos, admite que o tempo de agora o desconcerta. Pelo menos em matéria de cinema."
"“Eu acho que fui parar ao cinema porque não era católico, nem sequer batizado, e o cinema era uma espécie de religião onde se entrava. Os cineclubes eram o sítio da religião e nós vivíamos naquele universo como os seguidores do Bin Laden, em adoração. Mas houve várias coisas que foram sucessivamente mudando o lado histórico do cinema. Por exemplo, custa-me muito ir a uma sala em que o ecrã está à vista. Já é outra coisa, já não é cinema, já falta o respeito pela cortina que se abre sobre um mundo que não sei qual é, mas estou desejoso de conhecer.” O lado ritualístico, cerimonial, desapareceu totalmente, é bem certo. “Acabou de vez e não volta. E isso é algo que tenho vindo a interiorizar e a dizer: ‘Que sorte que eu tive.’ Porque eu fui dar ao cinema quando estavam vivos os maiores génios da sua história. Quando ia ao Chiado Terrasse ver ‘A Desaparecida’ e o ‘Hatari’, era um programa do outro mundo. Agora tenho imensa pena dos críticos, porque já não há grandes cineastas, a não ser os muito velhos, como o Manoel de Oliveira ou o Clint Eastwood. O Coppola ou o Scorsese já foram. ‘O Padrinho’ é fenomenal, o ‘Apocalypse Now’ também, ‘O Touro Enraivecido’ é um grande filme em qualquer parte do mundo. Mas estamos a falar de anos 70, não estamos a falar de 2010.”"
"Porquê fazer filmes se o cinema morreu? Melancólico, Seixas Santos admite que a fita “é um tipo a despedir-se, pode dizer-se que, de alguma maneira, este é um filme póstumo, não tenho ilusões”. Mas não um filme derradeiro, confessa-nos já em fim de conversa. Se as condições físicas deixarem e houver financiamento, o realizador quer fazer só mais um. A história de um miúdo que vê a barriga da mãe crescer durante uma gravidez e se interroga sobre o que aí vem. Depois do surpreendente prazer que me deu “E o Tempo Passa”, acho que quero ver esse filme em devir." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 12/03/2011