17.3.12

Os Descendentes
Título original: The Descendants
De: Alexander Payne
Com: George Clooney, Shailene Woodley, Amara Miller
Género: Drama, Comédia
Classificação: M/12
Outros dados: EUA, 2011, Cores, 115 min.

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"“Eu faço comédias”, diz Alexander Payne — mas não, é evidente, comédias como as outras. Aliás, quando o título deste texto é ‘Melodrama’, não se está a apelar a um reconhecimento de humor, mas a sublinhar um fator dramático — mesmo, é bem possível, com uma ou outra lágrima à mistura. Porque, de facto, quando se sai de “Os Descendentes” não trazemos o peito cansado de riso, mas um nó apertado na garganta. Comigo estão os membros da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, que atribui os Globos de Ouro: há bem poucos dias, disseram que este era o melhor filme do ano na categoria de drama e que George Clooney era o melhor ator num filme dramático — prémios que indiciam uma boa posição de partida para os Óscares. E, todavia..."

"E, todavia, logo nas primeiras cenas, quando Matt King/george Clooney, o protagonista, é identificado e nos apercebemos dos seus problemas de relacionamento com as filhas, agravados pelo facto de a mulher ter tido um acidente, estar em coma no hospital e, agora, ser ele sozinho a tomar conta delas, o que vemos é um personagem atarantado com a vida e com os que lhe estão próximos. Um personagem com um toque pateticamente ridículo, parente do reformado misantropo de “As Confissões de Schmidt” ou dos dois alcoólatras sem jeito para a vida de “Sideways”, os filmes que impuseram o realizador Alexander Payne no mundo do cinema — e na nossa memória. Um olhar que marca — é extraordinário como a paisagem deslumbrante do Havai, onde todo o filme decorre, pode ser desabrigada quando filmada com essa intenção. Um humor muito particular, cruel no destapar das fraquezas humanas, ao ponto de haver muitas cenas onde a hipótese de riso se estrangula. A lição de Chaplin: lembram-se do final de “Tempos Modernos”, o vagabundo e a miúda estrada fora, sem nada, só com esperança, muito provavelmente infundada? A lágrima é o que mais aflora. Eu sei que o raccord é excessivo, mas não me ocorre outro: Payne anda, de algum modo, pelos mesmos caminhos."

"E não é a miséria que tem a chave para as relações entre toda aquela gente que está no filme. Pelo contrário, Matt King é um homem muito rico, descendente da antiga nobreza havaiana, só que não usa todo o dinheiro que tem, vive do seu trabalho de advogado — e ainda menos deixa os filhos tocarem-lhe. Não é por avareza, é por sageza: deve-se dar aos filhos dinheiro para fazerem alguma coisa, não se deve dar-lhes dinheiro suficiente para não fazerem coisa alguma, diz-se logo no princípio do filme — e é uma lição ancestral. Simplesmente, as coisas não carrilam, a comunicação com as filhas está pelas ruas da amargura, o acidente que pôs a mulher em coma só veio complicar. Começamos a gostar muito do filme quando vemos que as relações entre aquele pai e as duas filhas (Alexandra/shailene Woodley, a mais velha, e Scottie/amara Miller, a mais jovem) não se delineiam pelos estereótipos, as miúdas não estão lá para servir um propósito dramático apenas conflitual (mesmo se houver um happy end), as personagens têm a complexidade de pessoas e, como tal, são contraditórias, não lineares, em progresso. Havemos de descobrir que todas as personagens do filme são assim, mesmo quando parecem desenhadas unidimensionalmente — veja-se a evolução da personagem Sid/ Nick Krause, o miúdo amigo de Alexandra, que começa por preencher todos os parâmetros do adolescente idiota chapado e, com o andar da carruagem, se torna um cimento afetivo essencial para consolidar a unidade daquela família. Veja-se a figura dos avós, que evolui em nós de uma simpatia imediata para uma aversão irremível, lá muito para diante. E veja-se, sobretudo, o abismo interior para que Matt caminha quando descobre que a mulher o traía: a cena em que ele a invetiva — ela inânime, na cama do hospital, ele em movimento, colérico — é um prodígio de construção. É risível e tremenda, ao mesmo tempo, e vemos o protagonista a alterar-se e nós a reconstruir uma imagem feita que dele tínhamos até aí. Espantosa é a arquitetura dramática em que tudo isto encaixa e a excelência que Payne consegue dos seus intérpretes para a tornar atuante."



"Mas não há que esquecer que “Os Descendentes” é um filme não exatamente sobre pessoas em relação, mas sobre a família no seu conjunto — e é esse território que explica um fio lateral da ficção, uma imensa extensão de terra que Matt e uns primos herdaram e que não pode estar (razões de lei, evitar direitos perenes) muito mais tempo na sua posse. Vai ser vendida agora, e há uma memória vivencial que se acorda para com aquele lugar ainda intocado, em estado selvagem — o Paraíso original que a ideia de Havai nos desperta e que o filme passa o tempo a fustigar. E, de repente, a ideia de preservar esse local, tal qual foi legado pelos ancestrais, ganha a força de um espírito clânico, um laço forte que ata o que ainda é possível conter daquele núcleo familiar devastado por um maremoto emocional. Para que a paz seja possível — e o filme feche." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 21/01/2012.