9.4.12

Le Havre
Título original: Le Havre
De: Aki Kaurismäki
Com: André Wilms, Jean-Pierre Darroussin, Blondin Miguel, Kati Outinen
Género: Comédia Dramática
Outros dados: ALE/FRA/FIN, 2011, Cores, 93 min.

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"Vamos rebobinar o filme. Voltemos àquela estação de comboios em que Marcel Marx aguarda a clientela do dia. O engraxador olha para os sapatos dos potenciais clientes, a ver se algum lhe cai na banquinha. E o primeiro que lhe aparece, que tem tromba rija, é logo um mafioso, pauvre diable que será morto a tiro e em off no minuto seguinte: felizmente, pagou a Marcel o serviço. De seguida, humilham o nosso homem, que mais tarde saberemos tratar-se de um ex-escritor exilado e que fala como Louis Jouvet. E arranca o genérico, com uma balada melancólica que podia vir de um western de Sergio Leone. Ainda não passaram 5 minutos dos 90 que “Le Havre” nos vai dar e Aki já expôs, e com uma eficácia incrível, todos os ingredientes da sua receita, todos os elementos da tragicomédia que nos espera: um herói que depende dos trocos, mas orgulhoso de quem é; um décor rétro (são incríveis os fogões, as jarras, os cinzeiros de Aki...) que tanto nos fala deste como de outros tempos; uma luta de classes sem acordo possível entre quem paga e quem recebe; e até um cartaz de circo na parede, porque o nosso Marcel, no meio de tudo isto, só pode ser um equilibrista."

"Depois surge aquela padeira, amiga de Marcel, que parece ter saído dos anos 40 e de um filme de outro Marcel, Pagnol. Surge a mulher do protagonista, Arletty (Kati Outinen), que tem o mesmo nome da atriz predileta de ainda outro Marcel, Carné. O filme ainda mal começou, repetimos. Capta-se a cinefilia, subtilmente denunciada, mas compreensível porque ali, naquele porto da Normandia, já o cinema francês fez desembarcar muitos aflitos. Reenquadra-se a mesma no programa estético de Aki, que mais uma vez se dispõe a levar-nos a acreditar no impossível (até numa cadela profética chamada Laika) e sem dever nada a ninguém. É o que basta para saber que o finlandês volta a estar perto do seu melhor, do nosso Aki predileto, “O Homem sem Passado”. Duas dores de alma enfrentará Marcel: uma moral (por Idrissa, o miúdo africano que ele ajuda numa Europa injusta) e uma afetiva (por Arletty, a dedicada esposa que o faz estar vivo e que descobre ter doença terminal)."

"A parada é talvez demasiado alta para Marcel. Mas Aki não desarma. Jamais fará ele tombar o seu herói no sentimentalismo ou no sacrifício, naquilo a que muitos dirão que não pode ser a realidade pura, só que as intenções do cineasta são mais ambiciosas que o ramerrão de todos os dias: o mundo de Aki é estranho — ah, pois é! — mas não é diferente do mundo em que vivemos. Apenas se reinventa, à nossa frente. Por isso só podemos criticar quem atacou Kaurismäki quando ele ousou figurar um contentor de refugiados limpinhos e orgulhosos — valerá a pena acrescentar mais à magnífica resposta que ele nos deu em entrevista sobre esse plano? Também por isso gostamos tanto do polícia que faz Darroussin e do modo como ele quebra o gelo para lá da sua aparência de agente da Gestapo. E de um concerto de rock, que nos faz lembrar a Rua da Beneficência (“I do my job”, canta Little Bob). Que a realidade possa circular assim, permeável a um humor fulgurante e a um sentido do dever a toda a prova, não é uma coisa extraordinária? O cinema também foi feito para figurar milagres e Aki, em “Le Havre”, arrisca timidamente o seu. Não o revelaremos, nem saberíamos como o fazer."



"Digamos antes que, em “Le Havre”, Aki se atreve a colorir de esperança o negrume dos dias com uma poesia humanista da qual só ele tem o copyright e que é todo um programa — admirável mundo novo que, lá por não ser natural, não deixa de ter os pés na Terra." Francisco Ferreira, Expresso de 18/02/2012