12.4.12

Vergonha
Título original: Shame

De: Steve McQueen

Com: Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale

Género: Drama

Classificação: M/18

Outros dados:
GB, 2012, Cores, 101 min.

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"No princípio do filme não sabemos nada do seu protagonista, a não ser que, nu, se desloca, obsessivamente, no interior de um apartamento, do quarto, à direita, para a casa de banho, à esquerda. Câmara fixa, sem imperativo de identificar aquele homem que circula. No caminho há um telefone com o respetivo atendedor automático e uma voz feminina, urgente, a rogar que responda. Não é claro, em cada uma dessas deslocações, o que está a acontecer; indícios de atividade sexual não permitem certezas. O que essa sequência materializa é uma rotina de abluções (matinais, noturnas?), com um desnorte, por baixo. E ficamos a saber que o filme vale a pena ser visto, porque não há, nele, a opção de contar — explicadinho, para espectador perceber —, antes a vontade de dar corpo a emoções, a coisas indizíveis com o léxico que as palavras permitem, mas concretizáveis por imagens em movimento. Aliás, um dos aspetos mais exaltantes de “Vergonha” é o extraordinário rigor plástico dos planos, frequentemente trabalhando nos limites do enquadramento (senhores projecionistas, por favor, não aviltem o trabalho de Steve Mcqueen, ponham a imagem inteira no ecrã e não anavalhem em cima, ou de lado, seja lá a que pretexto for: é melhor que a imagem não preencha o ecrã todo do que sobrar!)."

"Há uma beleza visível, explícita, significante, que funciona quase como uma declaração de princípios. E não me refiro apenas ao ‘quadro’, mas aos fatores cromáticos (“Vergonha” está sempre com cores dessaturadas, uma frieza sem abrigo), à cenografia (o interior do apartamento do protagonista, Brandon Sullivan, clean, de um bom gosto imaculado de simplicidade e requinte — aquário fora do mundo), à música (Glenn Gould a tocar Bach, absoluta perfeição que Brandon persegue — porventura como forma de esquecer a sua própria fealdade interior). Até Nova Iorque, vista das janelas do apartamento ou nas ruas, nos bares, é filmada com intenção inóspita."

"Mas, afinal, de que fala o filme? De solidão. Brandon Sullivan, o protagonista (que Michael Fassbender interpreta com uma secura que vai fazendo crescer a angústia), é um viciado em sexo e, nessa medida, um ser humano escalavrado pela sua própria compulsão e incapacidade de, verdadeiramente, obter prazer. Preso num continuado desejo que nunca se consuma numa relação onde haja afetos, investimento pessoal, partilha, Brandon é, na realidade, um onanista, como o seu imoderado consumo de pornografia atesta — e que está só, mesmo quando faz sexo com outros."



"Tudo se precipita quando a voz no atendedor de chamadas ganha corpo numa irmã também com desequilíbrios afetivos que não tem mais para onde ir e fica ali mesmo, naquela casa zen, impessoal, tentando uma boia de salvação para tentações suicidárias que não param de a empurrar para uma vontade de oblívio. E a compostura que, apesar de tudo, ia balizando a vida de Brandon começa a entontecer e a impeli-lo para o lado mais negro da existência. A parte final deste filme chega a arrepiar: o abismo é visível, a comiseração pela vítima da dependência uma constante, mas nada disso aplaina a dureza do olhar de McQueen. E é comovente como Fassbender, espantoso ator com um raro perfil de segurança e domínio do espaço de representação, se entrega à terrífica incapacidade de prazer, como se cada fibra do seu corpo carburasse em seco e a existência fosse um ciclo vicioso onde o orgasmo é difícil e o amor inadmissível." Jorge Leitão Ramos, Expresso de 03/03/2012